sábado, 30 de julho de 2016

Fiz hoje o melhor espetáculo de minha vida. Um gato felpudo subiu ao palco, entrou em cena e lá permaneceu debaixo dos refletores, olhando-nos com aqueles bigodes mudos e descrentes de quem zomba de Dionísio sem medo das consequências. Não houve qualquer interrupção da apresentação. O gato flanava pelo cenário, estacionava num canto, bocejava em nossa direção com as pestanas semicerradas. A cada pico dramático que insistíamos em galgar, o gato respondia com o dobro de tédio. Quanto mais fazíamos esforço para existir, o gato economizava forças na sua pose de esfinge do Egito. Seu pensamento de gato era traduzido em tempo real por cada um de nós, atores, e também pela plateia que lá estava: 'meow, que bando de gente estupidamente ridícula!'. O gato desmoronou sem dó todo e qualquer esforço que fazíamos. Nem Lawrence Olivier daria conta de competir com o bichano. Eis a lição mais valiosa que os atores podem ter a sorte de um dia receber: o quão somos incrivelmente patéticos, equilibristas na corda bamba, bastando um lufar de vento para o nosso castelo de cartas vir abaixo. Na dúvida, deixe os atores de lado e ouça o que o gato tem a dizer. Ouça sempre o gato em primeiríssimo lugar!
Jogue fora todos os seus Stanislavskis e adquira já um gato. Vai te ensinar mais do que todo o repertório reunido de pensadores do teatro ocidental.


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A graça maior de ser ator de teatro não é representar personagem alguma... O prazer está justamente nesse intervalo invisível para a plateia em que o ator entorta o nariz porque engasgou no texto que acabou de proferir, ou quando, num lapso de segundo, o ator se dá conta de que está no teatro naquele exato instante, vestindo roupas esquisitíssimas, e percebe o quão patético é ser quem se é: um contador de lorotas cujo fardo é chegar até o ponto final da história. A graça maior de ser ator de teatro é equilibrar-se na certeza e na dúvida de que o que fazemos no palco serve para alguma coisa nessa vida. Há credulidade e ceticismos igualmente envolvidos no âmago silencioso de cada ator. A graça de ser ator de teatro é viver com um pé lá, e outro cá. É nunca ser inteiro. É ser Hamlet. É ser sem recheio.


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Eu só adoro teatro porque não faz a menor falta não haver teatro. Fosse de outra maneira e eu me tornaria médico obstetra, para ser super útil e imprescindível ao futuro da humanidade.


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Todo bom personagem de teatro ensina ao ator que tudo é de brincadeirinha, que fazer Édipo Rei não implica em remoer emoções para alcançar as emoções do Rei de Tebas, que Hamlet só é Hamlet para quem assiste à montagem de Hamlet, que Mephistópheles não irá endiabrar e condenar ao fogo do inferno o seu intérprete. O bom personagem de teatro ensina ao ator a considerar que ele e a sua intimidade são coisas nada importantes frente à engenharia que é o próprio teatro, e da qual é dever dele, do ator, dar movimento. O bom personagem de teatro não exige do ator um posicionamento, uma assinatura, um timbre de individualidade. Isso são meras contingências naturais, sem que se demande qualquer esforço para alcançá-las. O bom personagem de teatro exige do ator coisas mais simples e concretas: um par de pulmões saudáveis, coordenação física e motora, um certo brilho no olhar e, quem sabe, um par de sobrancelhas conscientes. Evidentemente que o talento do ator não é medido em equações matemáticas de soma de fatores. A isso devemos convocar o mistério para que dê explicações. Mas, o que quero dizer é que o ator de teatro é um artista privilegiado frente aos outros atores das mídias tecnológicas - esses sim sempre convocados a emitir emoções, discursos, a explicar suas experiências sentimentais, a fazer girar o mundo ao redor de seus egos besuntados de purpurina -, porque ele, o ator de teatro, vive na pele a certeza e a consciência de que há entornos, cenários, maquinarias, outros tantos atores e artistas que, como ele, compõem algo do qual ele é resultado e não autor imediato. Não existe close-up em teatro. Não existe o 'meu melhor ângulo'. Não existe 'minha personagem', 'minha chance de acontecer', 'meu momento de dizer o que penso ou sinto'. A ética do teatro é uma ética da amplitude do palco. O palco é o mundo. Ou o mundo é um palco, como já diria o maior poeta de todos os tempos. Nossa miséria atual de valores é também produto de uma burrice egocêntrica em que padecemos da angústia constante por sermos vistos, reconhecidos, aplaudidos, reverenciados. O teatro nos ensina o inverso: a desaparecer, a dar passagem, a silenciar para que algo que sobreponha nossa diminuta estatura tenha direito de existência. Fôssemos menos televisivos e mais teatrais e a nossa vida ganharia contornos mais humanitários, se é que esse termo ainda hoje reverbera algum sentido.


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domingo, 17 de julho de 2016

A morte de Sábato Magaldi é também uma despedida do entendimento da arte como cultura, muito além daquele desejo louco e apaixonado de se expressar publicamente para receber aplausos e confetes. Homens do porte do Sábato Magaldi deram a entender aos atores de teatro e a gente de teatro que fazer teatro é coisa perigosa, que defender uma ideia debaixo do refletor pressupõe ousadia e responsabilidade que vão além do ímpeto tresloucado da afirmação do ego. Há consequências em querer ser artista. E, uma vez artista (quem hoje botará a cabeça a prêmio para definir o que é ser artista?), o preço que se paga é acostumar-se com a corda bamba das incertezas, do risco de remar contra correntezas do politicamente aceitável, de estampar a cara para revelar sem medo as hipocrisias de um mundo sempre rarefeito à própria consciência, de conviver com a sensação de nunca chegar a lugar algum, de nunca saber o suficiente para poder comunicar o que se sabe. Enfim, homens do porte do Sábato Magaldi deixam um legado muito maior do que a simples paixão pela arte do teatro. Apaixonar-se é fácil. O complicado é imprimir inteligência, cultura, senso ético e moral numa atividade tão devastada pelos bonequinhos da fama, do topete penteado e do charme das lentes de televisão. O teatro deveria ser um patrimônio de uma sociedade que valoriza o pensamento, que celebra o amor pelas suas tradições, que reitera um imaginário comum de histórias coletivas. Nossa miséria social de hoje não é só uma miséria de estômago. É também, e principalmente, uma miséria de metáforas, de palavras bonitas, de poesias afiadas, de paisagens que se dão ao direito de serem contempladas silenciosamente.


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O teatro é que deveria chamar o público para o teatro, não os atores.
Vivemos ainda nos estertores do século XIX, quando saía-se de casa para ver Xisto Bahia, Brandão Filho, João Caetano... Com a diferença de que Xisto Bahia, Brandão Filho e João Caetano eram grandes atores de teatro. O girar da ampulheta do tempo fez-nos mais tapados. Hoje, um pouco de purpurina da fama, um topete penteado, um timbre de voz sexy, uma certa composição ética e moral de bom-mocismo preocupado com os destinos do mundo são atributos suficientes para mexer com os hormônios alheios e chamar público ao teatro. Enquanto ao teatro pouco se dá atenção ou importância.
Penso na Rússia, um país com tantos problemas quanto o nosso, onde as peças de Tchekhov mofam em cartaz por anos a fio com plateias lotadas. Para além do ator que sobe ao palco para fazer Tchekhov, é Tchekhov ele próprio o que interessa. É a peça de teatro, é a história contada, é o desejo comum de partilhar de uma história contada. Penso nos nossos vizinhos argentinos, com teatros em funcionamento de segunda feira à segunda feira, igualmente lotados, e longe de serem subsidiados pela burrice de uma indústria televisiva que torna a tudo e a todos bonequinhos de comércio. 

O teatro deveria ser mais importante do que os atores.


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sexta-feira, 15 de julho de 2016

Inspiração é coisa de diafragma. Artista inspirado é um sujeito metido a besta estufado de ar. Vá estudar, vá? Mas nada de workshop, vivência, laboratório, imersão, oficina, colônia de férias... Vá se matricular num curso de formação, desses que forçam você a desistir de 'acontecer' no mercado, a compreender que o seu brilho é na verdade uma faísca fosca, mixuruca, e que o vosso talento anunciado não faz falta a palco dramático nenhum, no máximo encaixando-se nos requisitos duma vaga de vendedor de peixe na barraca da feira..., e vê se desembola o bendito meio de campo, sim?

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Qual de vós aí do outro lado tem o ridículo como ofício? Quem de vós tem a pachorra de olhar para a esquina da vida e dizer: é pouco? Quantos de vós, de consciência elevada, compreendem a secura de imaginação que paira sobre a rotina de tantos personagens que nasceram para ser o que são: personagens que vão dali até aqui para depois voltar daqui para ali? Quem de vós sabe olhar para o infinito do céu e berrar sem medo de receber um raio como resposta: VOCÊ SÓ PODE ESTAR DE BRINCADEIRA?!?! Quem de vós será aquele que impetuosamente reúne a coragem desrespeitosa de afirmar que as coisas tais como foram pensadas para existir são de uma chatice retumbante? Qual de vós será o doido varrido-corajoso a dar um passo adiante para peitar o mundo, estufar o peito, tomar fôlego, e declarar:

- EU SEI FAZER MELHOR?

Qual de vós é ridículo o suficiente a ponto de rir de tudo e de todos, e de si próprio, mas preservando uma certa melancolia derrotista de quem sabe que se, por um lado, tudo é tão delicado e poderoso quanto uma pirâmide de cartas de baralho, por outro, bastaria uma brisa leve para levar tudo abaixo...? Qual de vós? Qual?


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domingo, 10 de julho de 2016

Há dois momentos na história que fincam os fundamentos da idiotização completa do ator: 1) quando o ator perde a máscara; 2) quando surge a televisão... À perda da máscara segue a perda de todo vigor de expressão que o artifício demandava do intérprete. O ator desiste de ser épico e vira uma peça choraminguenta à serviço do charme melodramático. E também passa a relativizar tudo, a escarafunchar claros e escuros, a querer pormenorizar as contradições do âmago de seja lá o que for. Até um caroço de azeitona vira motivo para análises profundas, afinal, há que se descobrir um eu-caroço que justifique a natureza da azeitona tal qual ela se apresenta a nós: salgadinha e mergulhada na conserva. Em suma, o ator perde a força do porte de orador público para assumir a moleza do paciente em crise depressiva e deitado no seu divã particular. O surgimento da TV termina por idiotizar o que já havia de bastante idiota nesse ator de cara limpa, separado da máscara. Agora na TV, o ator - já molenga o suficiente, frouxo de energia expressiva o bastante, e padecendo das mesmas caraminholas psicológicas -, aprende a incrível arte de fazer biquinho. E de ser mimado. E de fazer as duas coisas ao mesmo tempo: fazer biquinho sendo mimado.

Digo isto porque acabo de ver uma dessas novelas que a TV transmite, e recheada de atores de teatro. E a pergunta que fica é só essa: qual o montante justo de dividendos que faz levar adiante essa maravilhosa barganha de perder totalmente o vigor da expressão para simplesmente fazer biquinho para o close-up da câmera? Qual o valor que compra a nossa incapacidade de tomar vergonha pela idiotice completa de uma energia já morta, enterrada e sepultada?


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A peça que escrevi a dramaturgia e que está em cartaz no Club Noir é extremamente política. Estourar um balão recheado com talco e fazer 'cof-cof' depois é de uma atitude política sem tamanho. E se você não vê simbologia alguma em fazer 'cof-cof' depois do estourar de um balão recheado com talco é porque a peça, sem dúvida alguma, é política mesmo. E caso você ache que é coisa de fazê-lo de trouxa obrigá-lo a perder seu precioso tempo para testemunhar um 'cof-cof' como resultado de um estouro de balão recheado com talco, mais outro ponto para mim, que tornei a peça que escrevi num gigantesco manifesto político.

Sou um autor de teses! Desses que estouram balões e polvilham filosofias pelo talco ao vento.



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Pequena anti-lição pedagógica aos atores, contrariando as palavras (palavras, palavras...) ditas por Hamlet:


- Quando subires ao palco, não queiras dizer nada, para isso já existem os trecos digitais que evocam todo e qualquer sentimento acumulado e ideias imprestáveis aos ouvidos de uma audiência viva... Queiras apenas, e ao contrário, ser esquisito; e esquisito na medida suficiente até o ponto de compreenderes que é impossível existir desse mesmo jeito esquisito que soubeste criar fora dos limites das tábuas. Diga apenas o que é preciso ser dito e que já está escrito para que o digas. Não aja naturalmente, para isso é que servem as aulas de etiqueta nas esquinas da vida e os laboratórios infinitos de psicodramas fajutos. Aliás, esqueça da natureza, ela só não é mais chata que a tua chatice de querer equipará-la. É aconselhável que tenhas voz, corpo e um mínimo de delicadeza nos movimentos. Mas só para desajustá-los a qualquer medida conhecida. Seja o dono de novas escalas de expressão e, por Deus!, não imites o chororô que virou gramática melodramática dos péssimos atores tarimbados pelo Close-Up da imagem. Por tudo o que é mais sagrado, não contamines a plateia com crises tuas, dores também tuas, desejos íntimos só teus, como se alguém, masoquista o suficiente, resolvesse querer sair de sua casa para ver-te assim, a renderes lágrimas ao vosso ego afetado. Saiba disfarçares a ti mesmo, a esconderes de quem és quando apareces trajado de Édipo Rei, Mephistópholes, Ariel ou o que o seja. Acredita no poder da máscara e faça tantas caretas quanto puderes a fim de apagar da memória que teu nariz é o teu nariz, a tua boca é a tua boca, e o teu cabelo é esse que penteias todas as vezes em que abandonas teu lar. Tenha em mente que é preciso tornares a ti mesmo um gigante, com estatura de gigante, voz de gigante e brados de gigante de fazer inveja ao mais surdo dos pregoeiros públicos. E manda às favas o desejo de encontrares a personagem fora daquilo que ela já se mostra ser: um belo dum punhado de palavras a espera de quem as mastigue! Não há um antes e um depois! Perder tempo a decifrar a personagem no invisível do que não existe é, no máximo, um belo dum pretexto para os péssimos atores gastarem verbos com justificativas mil para a sua inata falta de talento. Inventa o que não existe. E, se tudo já tiver sido inventado, finja que és o inventor daquilo que roubas...


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Carrego comigo uma vaquinha pequenina e de madeira montada num pedestal
Dessas vaquinhas que são todas seccionadas nas juntas e reunidas nas articulações por barbantes finos
Um brinquedo infantil
Que quando pressionado na base faz a vaquinha desmilinguir   
E que quando se solta o dedo da mesma base
A vaquinha volta a montar-se na belezura da vaquinha saudável de antigamente
Jogo fora todos os stanislaviskis
Essa vaquinha, para mim, é o que há de mais completo em termos de manual de existência para o ator
O ator que sabe desmilinguir para depois acionar os seus fios invisíveis das articulações e tornar-se novamente um ator de pé 
Esse ator já sabe tudo o que há para se saber
Um Hamlet que desmonta os ombros e desestabiliza os fios que sustentam o eixo do quadril mas que não prejudica os outros fios que mantém a base dos pés... já é um Hamlet sem que se precise SER o Hamlet
É um ser não sendo
É o Hamlet que basta  
Porque a vaquinha é sábia
Eis a questão!
Sábia porque sabe que a consciência de ser-uma-vaquinha pouco lhe garante alguma coisa em matéria de brincadeira
Ela brinca de ser vaca e pronto 
E para brincar só é preciso dar-se ao movimento da brincadeira
A seriedade do ator não está no seu compromisso sentimental com o invisível daquilo que não se vê 
Porque Hamlet, a rigor, não existe
E ele só pode existir porque ele de fato não existe
A vaquinha só é uma belezura de vaquinha porque ela em nenhum instante tenta aproximar-se do ser-uma-vaquinha
Ela mente que é uma vaquinha
E é nessa mentira
E por essa mentira 
Que ela existe
Há um compromisso sim com o invisível
Com o mistério
Com um tanto de coisas que não se pode ver e tampouco tocar
Mas isso já é o próprio teatro que se encarrega de nos ensinar 
Não há nada a ser decifrado
Enigma nenhum deve o ator querer decifrar 
É deixar-se levar
E pronto
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Afinal
Quando olho essa minha bendita vaquinha bem nos olhos
Tenho a certeza de que essa pequena peça de madeira olha também para mim 
Mas quanto a isso nada resta a fazer
Senão celebrar o assombro que é ser olhado 
Por uma vaquinha de olhos de 
Madeira.



A experiência de estar fora de cena e acompanhar diariamente o trabalho de três atrizes no palco reforça o meu assombro e admiração com relação ao ofício daqueles que fazem teatro. Que coisa mais absurdamente despropositada é oferecer-se aos olhares alheios para dizer sistematicamente as mesmas coisas, atravessar os mesmos atalhos, respirar as mesmas pausas...  E reunir tudo o que já se sabe fazer para fazer de novo e esperar que o público que aplaudiu ontem aplauda hoje também. E não acostumar-se com o que deu certo na noite anterior porque para dar errado hoje basta um estalar de dedos assim ó: click. E torcer para que o universo conspire à favor, porque há mistérios no teatro que só conseguimos entender porque deixamos de querer compreendê-los. E os mistérios são poderosos! E então acabar-se por inteiro nesse esforço de existir só por agora, mas não acabar-se por completo! Reservar alguma energia para existir e repetir tudo o que foi repetido hoje amanhã também. Que coisa mais assombrosamente maluca é essa que escolhemos fazer. Fosse por algum intermédio de uma consciência racional e escolheríamos fazer qualquer outra coisa, exceto esse suicídio diário, no mesmo horário, no mesmo local, na esperança de ressuscitar só para ter a chance de morrer de novo...


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terça-feira, 5 de julho de 2016

Saiu no jornal:

Anthony Hopkins gravou um telefilme para a BBC numa transcrição da peça teatral 'O Camareiro' em que interpreta um velho ator que pisa ao palco para fazer Rei Lear, e que chega à conclusão de que desperdiçou a sua vida toda ao escolher dedicá-la às ribaltas. Interpelado pelo jornalista, Hopkins - que afastou-se dos palcos londrinos há mais de 30 anos para investir no cinema -, afirma que sua distância do teatro deveu-se justamente ao diagnóstico que o referido personagem anuncia: para evitar desperdícios. Pois que seja! Vejam se esse não é o primeiríssimo e mais importante atributo de que se vale aqueles que escolhem ter o teatro como ofício: o de optar por desperdiçar-se pela vida, esgotar-se, aniquilar-se a cada noite. Sem demagogia ou poesias forçadas, não seria melhor ir gastando-se pelos dias ao invés de somá-los? Gorduras, dinheiro, fama, um eterno engolir, rechear-se em acumulamentos infinitos... Não será, pois, essa a mais valiosa qualidade do teatro, a de tratar a vida na sua dimensão mais concreta e sem os recheios das fabulações mentirosas pelas quais nos deixamos seduzir, e que, mais cedo ou mais tarde, terminam todas para logo em seguida terminarem com a gente? Se a constante dessa aventura toda é perder sempre, por que evitar um ofício que nos oferece a consciência de que perdemos a cada instante, e sucessivamente, e ao infinito, e até não sobrar o que mais perder? Que maravilha seria a minha vida se ao cabo de uma carreira longa e penosa no teatro eu chegasse a simples conclusão de que eu desperdicei todo meu tempo, de que ostento pouco ou quase nada do que conquistei, que não carrego honrarias, posses ou perfumes caros dados de presente por quem sempre quis ver-me cheiroso. Muito melhor, imagino eu, do que alcançar o ocaso da existência rodeado de paparicos, de papagaios de ocasião, de serviçais e nababos a adularem-me a paciência...
Viva o teatro!
Viva o desperdício!



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