sábado, 30 de julho de 2016

Todo bom personagem de teatro ensina ao ator que tudo é de brincadeirinha, que fazer Édipo Rei não implica em remoer emoções para alcançar as emoções do Rei de Tebas, que Hamlet só é Hamlet para quem assiste à montagem de Hamlet, que Mephistópheles não irá endiabrar e condenar ao fogo do inferno o seu intérprete. O bom personagem de teatro ensina ao ator a considerar que ele e a sua intimidade são coisas nada importantes frente à engenharia que é o próprio teatro, e da qual é dever dele, do ator, dar movimento. O bom personagem de teatro não exige do ator um posicionamento, uma assinatura, um timbre de individualidade. Isso são meras contingências naturais, sem que se demande qualquer esforço para alcançá-las. O bom personagem de teatro exige do ator coisas mais simples e concretas: um par de pulmões saudáveis, coordenação física e motora, um certo brilho no olhar e, quem sabe, um par de sobrancelhas conscientes. Evidentemente que o talento do ator não é medido em equações matemáticas de soma de fatores. A isso devemos convocar o mistério para que dê explicações. Mas, o que quero dizer é que o ator de teatro é um artista privilegiado frente aos outros atores das mídias tecnológicas - esses sim sempre convocados a emitir emoções, discursos, a explicar suas experiências sentimentais, a fazer girar o mundo ao redor de seus egos besuntados de purpurina -, porque ele, o ator de teatro, vive na pele a certeza e a consciência de que há entornos, cenários, maquinarias, outros tantos atores e artistas que, como ele, compõem algo do qual ele é resultado e não autor imediato. Não existe close-up em teatro. Não existe o 'meu melhor ângulo'. Não existe 'minha personagem', 'minha chance de acontecer', 'meu momento de dizer o que penso ou sinto'. A ética do teatro é uma ética da amplitude do palco. O palco é o mundo. Ou o mundo é um palco, como já diria o maior poeta de todos os tempos. Nossa miséria atual de valores é também produto de uma burrice egocêntrica em que padecemos da angústia constante por sermos vistos, reconhecidos, aplaudidos, reverenciados. O teatro nos ensina o inverso: a desaparecer, a dar passagem, a silenciar para que algo que sobreponha nossa diminuta estatura tenha direito de existência. Fôssemos menos televisivos e mais teatrais e a nossa vida ganharia contornos mais humanitários, se é que esse termo ainda hoje reverbera algum sentido.


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