Todo bom personagem de teatro ensina ao ator que tudo é de
brincadeirinha, que fazer Édipo Rei não implica em remoer emoções para
alcançar as emoções do Rei de Tebas, que Hamlet só é Hamlet para quem
assiste à montagem de Hamlet, que Mephistópheles não irá endiabrar e
condenar ao fogo do inferno o seu intérprete. O bom personagem de teatro
ensina ao ator a considerar que ele e a sua intimidade são coisas nada
importantes frente à engenharia que é o próprio teatro, e da qual é
dever dele, do ator, dar movimento. O bom personagem de teatro não
exige do ator um posicionamento, uma assinatura, um timbre de
individualidade. Isso são meras contingências naturais, sem que se
demande qualquer esforço para alcançá-las. O bom personagem de teatro
exige do ator coisas mais simples e concretas: um par de pulmões
saudáveis, coordenação física e motora, um certo brilho no olhar e, quem
sabe, um par de sobrancelhas conscientes. Evidentemente que o talento
do ator não é medido em equações matemáticas de soma de fatores. A isso
devemos convocar o mistério para que dê explicações. Mas, o que quero
dizer é que o ator de teatro é um artista privilegiado frente aos outros
atores das mídias tecnológicas - esses sim sempre convocados a emitir
emoções, discursos, a explicar suas experiências sentimentais, a fazer
girar o mundo ao redor de seus egos besuntados de purpurina -, porque
ele, o ator de teatro, vive na pele a certeza e a consciência de que há
entornos, cenários, maquinarias, outros tantos atores e artistas que,
como ele, compõem algo do qual ele é resultado e não autor imediato. Não
existe close-up em teatro. Não existe o 'meu melhor ângulo'. Não existe
'minha personagem', 'minha chance de acontecer', 'meu momento de dizer o
que penso ou sinto'. A ética do teatro é uma ética da amplitude do
palco. O palco é o mundo. Ou o mundo é um palco, como já diria o maior
poeta de todos os tempos. Nossa miséria atual de valores é também
produto de uma burrice egocêntrica em que padecemos da angústia
constante por sermos vistos, reconhecidos, aplaudidos, reverenciados. O
teatro nos ensina o inverso: a desaparecer, a dar passagem, a silenciar
para que algo que sobreponha nossa diminuta estatura tenha direito de
existência. Fôssemos menos televisivos e mais teatrais e a nossa vida
ganharia contornos mais humanitários, se é que esse termo ainda hoje
reverbera algum sentido.
...
...
Nenhum comentário:
Postar um comentário