domingo, 10 de julho de 2016

Carrego comigo uma vaquinha pequenina e de madeira montada num pedestal
Dessas vaquinhas que são todas seccionadas nas juntas e reunidas nas articulações por barbantes finos
Um brinquedo infantil
Que quando pressionado na base faz a vaquinha desmilinguir   
E que quando se solta o dedo da mesma base
A vaquinha volta a montar-se na belezura da vaquinha saudável de antigamente
Jogo fora todos os stanislaviskis
Essa vaquinha, para mim, é o que há de mais completo em termos de manual de existência para o ator
O ator que sabe desmilinguir para depois acionar os seus fios invisíveis das articulações e tornar-se novamente um ator de pé 
Esse ator já sabe tudo o que há para se saber
Um Hamlet que desmonta os ombros e desestabiliza os fios que sustentam o eixo do quadril mas que não prejudica os outros fios que mantém a base dos pés... já é um Hamlet sem que se precise SER o Hamlet
É um ser não sendo
É o Hamlet que basta  
Porque a vaquinha é sábia
Eis a questão!
Sábia porque sabe que a consciência de ser-uma-vaquinha pouco lhe garante alguma coisa em matéria de brincadeira
Ela brinca de ser vaca e pronto 
E para brincar só é preciso dar-se ao movimento da brincadeira
A seriedade do ator não está no seu compromisso sentimental com o invisível daquilo que não se vê 
Porque Hamlet, a rigor, não existe
E ele só pode existir porque ele de fato não existe
A vaquinha só é uma belezura de vaquinha porque ela em nenhum instante tenta aproximar-se do ser-uma-vaquinha
Ela mente que é uma vaquinha
E é nessa mentira
E por essa mentira 
Que ela existe
Há um compromisso sim com o invisível
Com o mistério
Com um tanto de coisas que não se pode ver e tampouco tocar
Mas isso já é o próprio teatro que se encarrega de nos ensinar 
Não há nada a ser decifrado
Enigma nenhum deve o ator querer decifrar 
É deixar-se levar
E pronto
...
Afinal
Quando olho essa minha bendita vaquinha bem nos olhos
Tenho a certeza de que essa pequena peça de madeira olha também para mim 
Mas quanto a isso nada resta a fazer
Senão celebrar o assombro que é ser olhado 
Por uma vaquinha de olhos de 
Madeira.



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