quarta-feira, 8 de maio de 2019

Três dias na Unicamp para um contato próximo com os alunos da graduação da faculdade de Artes Cênicas, a mesma gradução que completei há quase 20 anos. Há 20 anos sou o resultado da soma de experiências que não significaria coisa alguma não fossem os 4 anos em que passei internado nessa maravilhosa universidade, casa de grandes professores que tive. Quando alguém hoje se propõe a ser ator em conformidade com o frescor dos tempos que deposita no charme pessoal a razão de uma exposição pública, fazendo uso de toda e qualquer artimanha malandra para provar ao mundo que o que vale mesmo é ser simpático, extrovertido, cheiroso e dono de um certo sex appeal, eu lembro-me da minha primeiríssima aula, aos 17 anos, entusiasmadíssimo com a vida que eu não conhecia e que imaginava dominar. A professora, uma das melhores que tive, pedia que cada aluno, um por vez, saísse da sala e retornasse pela mesma porta, se postasse de pé diante do restante da turma (toda ela sentada feito uma plateia) e dissesse seu nome. Só isso. Era somente isso. O constrangimento de ser visto era suplantado pelo ego que cada um de nós trazia de fora, adicionado à certeza de que éramos os novos Paulos Autrans, as novas Cacildas Beckers da safra moderna. Ninguém de nós suportava desvestir-se diante dos outros e simplesmente parar diante de uma audiência para anunciar um nome. Éramos afetados e exibidos por razões óbvias: a própria juventude carrega essa natural petulância, e o mundo do qual vínhamos nos ensinava desde sempre a arrebitar o nariz para provarmos que tínhamos algum valor. Pois bem. Foram 4 longos anos de demolição do ego, da ideia falsa do que é ser ator, de implosão dessa coisa de fazer qualquer uso de nossa capacidade expressiva para atrair a atenção alheia. Meus 4 longos anos ensinaram a mim e aos meus colegas a como não vilipendiar essa profissão importantíssima e de uma gravidade ímpar que pressupõe aparecer diante do outro para defender uma ideia, para estar a serviço de algo, para servir a algum propósito um pouco mais nobre do que encher os bolsos de grana, reunir um fã clube, clarear a dentadura no final do mês. Em uma única aula já é possível sentir a dimensão do ridículo que existe nessa atitude esnobe que é a de se imaginar grandioso para além da diminuta estatura que cada um de nós carrega. E que a grandeza de ser um ator de teatro está em ter a humildade de servir ao teatro, e não usá-lo para si. Ninguém sai de uma faculdade pronto ou plenamente formado, mas sai sim atento. Já é impossível ser ingênuo depois de 4 anos de imersão intensiva, alucinada, desvairada, apaixonada, repleta de crises. E hoje, depois de mais 20 anos em que pisei pela primeira vez na Unicamp, sinto-me no direito e no dever de defender a minha profissão e eriçar a minha crina que ainda resiste ao tempo para fazer frente a esse mercado de fast-food que promete fazer de um jovem um artista com alguns retoques no seu figurino empoado, uma penteada no topete, um cheiro no cangote. Fico emocionado de ver a minha faculdade funcionando com novos jovens, nova gente que se permite experimentar em todas as suas fraquezas e potencialidades antes de estrear para o mundo, sabendo que o ofício do ator é gravíssimo, perigosíssimo, e que se fôssemos de fato um país que entendesse o sentido e o valor que há na atividade de representar um papel diante de uma audiência, não estaríamos hoje nas mãos de marqueteiros, filósofos fajutos, ególatras assumidos, gente que se enfurna atrás de muralhas (ou estúdios de TV) ostentando tapa-olhos, gente que se arroga o direito de 'SER ELA MESMA' ainda que de posse de uma função infinitamente maior e mais importante de que a de coçar o sovaco na intimidade do lar. 

Obrigado a minha Unicamp, aos professores e alunos da Faculdade de Artes Cênicas, aos de hoje, aos de ontem, e aos que virão.

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domingo, 17 de março de 2019

Antes nenhum teatro do que um teatro dentro dum shopping. Antes livro nenhum do que folhear páginas e encontrar os anúncios das Casas Bahia. As pausas da sinfonia são tão ou mais importantes que a própria sinfonia sendo tocada. SILÊNCIO, FAVOR NÃO PERTURBAR! Essa maravilhosa frase de hotel colocada nas plaquinhas que vão nas maçanetas dos quartos deveria nos acompanhar para tudo quanto é canto da vida inteligente. Se é para enveredar pela histeria como forma de aumentar a receita, que não haja nada disso que nos acostumamos a apelidar de Cultura, e que se invista sem constrangimento na vitrine esquizofrênica que não economiza promoções para abocanhar o cliente.


Você que é ator nos dias que seguem é igualzinho a um turista de veraneio. Passa um semestre inteiro planejando suas férias para, ao final, viajar durante umas poucas e mixurucas semanas. Teatro virou pousada de fim de semana. E, o pior, há aqueles atores da imagem, da fama impressa na telinha, que enaltecem o palco dizendo que é lá onde o ator verdadeiramente se ergue e se fortalece, e não demoram a correr ao teatro para estrear as suas produções com essa chancela maravilhosa e altruísta. São mentirosos. Mentirosos vaidosos. Nunca frequentaram o teatro, nunca estudaram para estar na posição de defender o teatro, nunca se preocuparam com outra coisa senão com gerenciar suas bagagens pessoais de gente bem sucedida no mercado da moda. São turistas igualmente, e da pior espécie, daqueles que enaltecem a paisagem enquanto deixam para trás o lixo do piquenique que armaram. Voltam correndo para o território ao qual pertencem: o da propaganda e do marketing.

Adicionado a isso, temos a indústria do DRTÊ, que despeja no mercado a cada semestre uma tonelada de gente com o bendito documento conquistado a duras penas em cursos de 'formação' de 1, 2 anos, às vezes com uma carga horária extenuante de encontros aos sábados (VEJA BEM: AOS SÁBADOS... só AOS SÁBADOS). Dá próxima vez que for ao neurologista não deixe de perguntar ao médico qual acampamento de férias ele frequentou para conseguir o diploma de médico que o autoriza a abrir a sua cabeça.

Enfim, se o teatro é um evento político, os corruptos e corruptores somos nós mesmos que dele - do teatro -, fazemos uso para gazetear ao mundo que somos os únicos remanescentes da alta Cultura degenerada. Mentira. Mentirosos. É o que somos.



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Oswald de Andrade é o nosso verdadeiro Stanislavski.
Machado de Assis é o nosso Shakespeare. Memória emotiva é o escambau! Ou só se for a lembrança imediata de haver comido o vizinho ao palitar os dentes arrancando um naco enorme de carne. Somos antropófagos assumidos (delícia!), nunca psicoterapeutas do abstrato. Nosso Shakespeare é o Bruxo da pena da galhofa! O cínico, o irônico, o melancólico... Tudo junto e misturado. O Teatro moderno nasce com Machado, e nas páginas, não no palco. Subvertemos até as ribaltas ao iluminar o invisível da entrelinha... e tornamo-nos devassos! Graças a Dionísio nosso Laurence Olivier é mulher, é Dercy Gonçalves! Quarta parede é o escambau!, o lance é mostrar a xereca, falar alto, estar em cena como quem se equilibra no fio. Nosso teatro é maravilhoso e não comporta essa gende azeda e verde do sentimento sentimental, messiânicos do Deus invisível, arautos de coisa nenhuma! Um viva aos urdimentos concretos e FALSOS DO TEATRO! Aqui ninguém cresceu, patinamos na primeira infância... E GRAÇAS A DIONÍSIO! Graças a Oswald! A Machado! O mundo é uma opereta bufa... Tupy or Not Tupy, that is the question! Lugar-de-fala é o escambau! Aqui é carnaval! Meu reino por um cocar de índio! Pinto a cara de qual cor quiser! Sou Cis-Camaleônico, nipônico, hidropônico!


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É tão bom ser ator. Recomendo a todos. Não que vocês não o sejam - os que escolheram não serem atores. São. Quer queiram ou não, vocês todos são atores: dos mais tímidos aos mais falastrões, todos são atores. Talvez tenham pouca consciência disso, mas pouco importa: continuam atores com ou sem consciência de que o são. O privilégio de ser ator é saber que se é ator, no palco... e também fora dele (e talvez principalmente fora dele). Quando se é ator por escolha de ser ator a gente presta um pouco mais de atenção ao desempenho nosso no palco da vida. E rimos das nossas péssimas performances, dos nossos pífios desempenhos. Talvez seja isso mesmo: é tão bom ser ator no palco justamente para saborear o nosso péssimo desempenho fora dele. E assim nos precaver de tropeçar de novo no mesmo degrau que um dia tropeçamos, e que costumam tropeçar reiteradamente aqueles que não sabem que são atores.

É ótimo ser ator. Não há nada mais educativo (e sofrido, evidentemente) do que ser ator por escolha (e dedicação) de ser um ator.



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sexta-feira, 8 de março de 2019

É a geração dos não-atores (com DRTÊ), do não-presidente (com DRTÊ!), que é ELE MESMO, ele, um despachadão, sincerão. É a geração da espontaneidade como valor, da ausência de qualquer consciência de que há um papel público a ser representado. A tragédia é essa: quer queiramos ou não, o mundo é um palco. É a falência da personagem, do teatro, dos urdimentos, da distância entre nossa cabeça e o firmamento onde se penduram os astros, falência da reverência à indumentária que é outra pele diferente do jeans e da chinela de dedo. Tempo do teto baixo, do gabinete, da psicoterapia, de gente no divã que deseja sofrer e sofre de verdade para tratar a verdade do sofrimento como um produto a ser vendido na feira livre: a coragem do sofrer, de saber ser vítima e desejar vitimizar-se através do sofrimento. Tempo do projeto pessoal, da abertura do MEI, do microempreendedor individual, tempo do liberalismo absoluto: sobrevive quem se vende melhor. Tudo é performance, teatro-verdade, teatro-depoimento, teatro-do-eu, tempo da ágora grega transformada no quintal de casa, na goiabeira de casa, lá onde eu trepo, encontro Jêzuis... e ME salvo. Salve-se quem puder, que belo mantra. É o tempo do seja você mesmo, do coaching, tempo daquela preparadora de elenco famosa que sabe arrancar o melhor de você através de um mergulho em você mesmo. E dá-lhe tapas, autoflagelação, urros e grunhidos. Tempo do workshop, da vivência, da imersão. É a geração da selfie, da #hashtag, do grupo identitário, do bairrismo, da falência das narrativas comuns, do imaginário comum, da atrofia dos pulmões em favor do microfone de lapela, do close-up, do ar condicionado do estúdio refrigerado. É o tempo do Deus no coração, do SEU deus que resolve habitar o SEU coração, e dá-lhe olhinhos fechados, cercados por muros, cercas farpadas. É a geração que reescreve Shakespeare, Sófocles, Ibsen para que Ibsen, Sófocles e Shakespeare caibam na boca de quem perdeu a capacidade de abrir e fechar a mandíbula e agora aposta nos sussurros, nas entrelinhas, no sub-texto, no não-dito porque o que é dito é impossível de ser dito. É o tempo do ator flácido, sem tônus, molenga, do ator que jamais compreenderia a absurda corrupção que existe no fato dele se apresentar diante de uma audiência exatamente assim: flácido, sem tônus, sem voz, com o seu fiapo afetado de voz. Ao contrário: esse ator ama a molenguice, e a plateia, também igualmente atrofiada de força imaginativa, aplaude de pé a completa anemia expressiva. É o tempo do sub, tudo sub: subalterno ao gigantesco temor de sobrevoar qualquer coisa, de alçar voo e fazer uma panorâmica. Tempo do tapa-olhos, da conexão comigo mesmo, do namastê, do amém, do evoé que é mais autoajuda do que brado para os deuses. Aliás, pobres Deuses, aposentados, assistindo a tudo isso como um grande reality-show cujos brothers somos nós, autopiedosos, violentos, burros, ultra espiritualizados, íntegros, mimados até a tampa.


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segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Quando você quiser ser ator, não dê tudo de si, não. Dê metade mesmo. Deixe que o 50% restante venha de fora, não dependa do seu talento fulgurante. Ou melhor, dê 30%! Vai que na proporção anterior esteja incluso aquele momento emocionante em que você aperta os olhinhos e embarga um soluço lacrimoso para provar que a personagem está lá, latejante, toda ela sob seu domínio? Olha, quer saber? Dê 5%. Se 5% determinar somente que você esteja lá, de corpo inteiro e sem afetações para representar a bendita da personagem, então é só desse mínimo mesmo de que você precisa. Aliás, compre um gato e jogue fora todos os métodos Stanislavskis e os laboratórios de imersão com a Fátima Toledo. Observe seu gato e veja que qualquer mínimo esforço a mais do que o estritamente necessário já é motivo pro bichano cofiar os bigodes do focinho e, impassível, responder: Miau***

***em livre tradução: Melhor Não.


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Se o teatro fosse uma orquestra, duvido que ao ator coubesse o papel de spalla. Regente? Muito menos. Quem dirige o teatro é a cena, não o ator. No máximo ele estaria lá, misturado no meio da fanfarra, com um olho atento à partitura, o outro olho no maestro. Toda grande interpretação de qualquer ator é fruto de uma boa arquitetura da cena. E cena quer dizer tudo: espaço, cenário, figurino, música, maquiagem, luz... Não se sobrevive debaixo do refletor sem um edifício erguido para sustentar quem no palco se arrisca. E esse edifício pode perfeitamente ser todo vazado: não haver nada, e ainda assim será a maior força a agir sobre o ator. Acredito mais em encenadores do que em diretores. O bom diretor é um bom encenador. Não sendo um bom encenador, dificilmente ocorrerá de saber dirigir qualquer coisa. O erro é deduzir que o ator é protagonista porque é dele que emana essa coisa de 'viver' a personagem, e nisso gasta-se um tempo enorme, tentando dar conta de uma coisa que não existe e jamais existirá. Um palco de madeira existe. Um tecido existe. Um acorde é palpável e tangível. Hamlet não. Hamlet é assunto para a plateia, não para o ator que o finge ser. Para o ator que representa Hamlet, saber apanhar um punhal é tratar de Hamlet mais do que tentar viver Hamlet. Acho um pleonasmo dizer que o teatro é um arte coletiva. Ou melhor, acho um erro mesmo, porque por 'coletivo' quase sempre se pressupõe igualdade de territórios. Não acho. Acho que há hierarquias bastante claras. E o ator nunca é o sortudo que tem a rapadura nas mãos. Ele é mais vítima do que herói, sempre. E para seu próprio benefício.


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... "(...) finge que é dor a dor que deveras sente" é verso lapidar. É dizer que representar é potencializar o sentir. Mas não o sentir da dor genuína, que pelo fingimento é filtrada - e só porque filtrada é que pode ser representada. É o sentir da inteligência. A dor que de tão genuína para ser fingida como verdadeira recebe o direito de mergulhar para o centro, não onde fica o coração, mas muito mais profundo que isso: lá de onde articulamos a inteligência. Há dor mais profunda que a de pensar? O artista age pela inteligência, que é o principal e mais poderoso músculo do sentir.

Fernando Pessoa é o maior dos teóricos da arte de representar. Ultrapassa a todos porque está sempre nas entrelinhas, no lusco-fusco, entre a sombra dos bastidores e a luz escaldante dos refletores. Que é a mesma condição do ator: que só é ator porque não nega o vão que existe entre seu rosto e a máscara que ostenta.


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terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Amo a máxima de quem despeja uma tonelada de gente com DRTÊ no mercado sob o argumento de que 'o teatro naturalmente seleciona quem é do teatro'. U-hum, também acho. Enquanto formamos um contingente de espectadores tapados: um tapado debaixo do refletor só pode produzir tapados silenciosos na plateia (assim como tapados-dramaturgos, tapados-diretores, tapados-de-tudo-quanto-é-espécie-de-tapados), lavamos as mãos deliberadamente de qualquer responsabilidade ética que possa haver no fato de existir publicamente diante do outro. Em outros termos, usamos o teatro para não perder clientela. Os tapados vão ficando pelo caminho, dirão os defensores da enxurrada de DRTÊ. U-hum. Prefiro ficar ao lado da Fernandona Montenegro quando ela diz: SAIA DA FRENTE! Não me vá empatar o meio de campo com as suas demandas pessoais de autoafirmação... Corretíssima. Se a desculpa é o bendito DRTÊ, melhor eliminar de vez esse carimbo que não significa absolutamente nada, já que a educação - a formação do artista - é preterida em função da necessidade minha ($$$) de empurrar o fulano para ver se o palco o aceita ou não. U-hum. Sabem por que o Bolsonaro está no poder, por que verdade e mentira são a mesma e única coisa, por que a complacência tomou a todos de sopetão? Porque tanto faz, tanto fez... Eu estou aqui para garantir o que diz respeito a mim, o impacto que isso terá no outro já não é mais problema que me abale, ou, resumindo, o teatro - o Grande Teatro do Mundo - que se vire!
Da próxima vez que for a um neurologista, deixe ele abrir o seu crânio. A depender se você sairá vivo ou não, a medicina irá naturalmente separar o verdadeiro do falso médico.


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Com Shakespeare há uma dupla vantagem: você representa o papel ao mesmo tempo em que olha para a plateia e diz diretamente a ela: veja como eu represento o papel. Com Shakespeare você aprende a ser ator. E, se aprender direitinho, capaz de você também representar o papel.
Resumindo: jogue o velho Stan no lixo e aprimore o fingimento SEM envolver VERDADE alguma.


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É isso que dá chamar de ator quem nunca foi ator, empregado de uma emissora que forma qualquer espécie de produto vendável, exceto atores: o nunca-ator-que-sempre-fora-chamado-de-ator por trabalhar em obras vendáveis que o classificavam como ator foi parar na câmara dos deputados, e pelos votos daqueles telespectadores que cresceram formados na mediocridade do desempenho desses-que-haviam-sido-vendidos-como-atores, incrementando de vulgaridade o espetáculo pavoroso começado lá atrás, na singela e inofensiva mentira de dizer que um Zé Ninguém é um ator. É a junção perfeita do enredo ruim com a platéia de acéfalos criada pela força de um elenco de energúmenos vendáveis. PLIM-PLIM (barulho de moedinhas caindo na caixa registradora).

De nada adianta estampar a #hashtag#RIPdamaDOteatro. Melhor seria homenagear a burrice que nos brota ali ao lado, na esquina.

Como bem diz Hamlet: Cuide dos atores, eles são a crônica e o resumo do seu tempo.... Ou, em outros termos, diante de um espetáculo lamentável, os bons saem de cena.



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Teatro é simples, simplérrimo. A sua dificuldade é essa: de tão simples, não compreende métodos, resolve-se na experiência imediata de se jogar diante de uma plateia e cumprir com a monumental tarefa de não deixá-la cair no sono, de fazer com que um mero entre-ato forjado artificialmente pela teimosia de alguém seja mais interessante que a vida. Viu como é simples? Teatro é a tarefa de tentar ser mais interessante que a vida sem fazer com que a plateia ronque a plenos pulmões. Tudo o que proponha qualquer tipo de esquematização para explicar, teorizar, mapear o trabalho do ator é um passaporte direto para complicar o que nasceu explicitamente fácil de se compreender. O que não significa, evidentemente, facilidade em se executar o combinado. Mas reparem só na chatice danada, no infrutífero objetivo que paira no esforço hercúleo de fazer do ator (ou da personagem - o que é ainda pior) um troço complexo, pluridimensional, cheio de idas e vindas, cores e espectros infinitos de desejos, emoções, pensamentos, vontades e contra-vontades e afins. Ai que chatice e que tristeza ser obrigado a fugir da maravilhosa crueza precária que é atirar-se numa corda bamba para caminhar aos tropeços e perigos de queda até a segurança do lado oposto. Fazer do teatro (do ator e da personagem) essa incrível rede de teorias e práticas e moldes e métodos e princípios e etc é o mesmo que diante duma bela paisagem o fulano resolver abrir um caderninho de notas para confirmar a composição da fórmula da pólvora. Encha os benditos pulmões e aperte os olhinhos para o horizonte, ÓH CÉUS!


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Que bela profissão essa em que estar diante do outro já é um ato político! Repare: um ator confortável em cima do palco, todo ele entregue ao mesmo registro de tônus muscular que ele carrega quando está no aconchego de sua casa esquentando água pro seu chá de camomila equipara-se em gênero, número e grau a esse nosso presidente atual - o mito da nova política -, que não mede esforços em nos mostrar que ele é um homem comum, que não há problema algum em vestir um chinelo para uma foto que será estampada em todos os jornais e confirmará o maior representante nacional de um cargo público relaxado (espontâneo!) em pleno horário de serviço. Relaxado. A mesma corrupção latente que existe nesse ator que apoia o peso do corpo numa das pernas como se estivesse pedindo um café com leite no balcão da padaria e profere o seu texto decorado com o mesmo esforço em que os pulmões se inflam para um bocejo prenunciador de uma soneca pós-almoço de domingo. E tudo isso feito e organizado para existir diante de uma plateia que em nada tem a ver com o jeito despachado e confortável de se existir dessa figura que deveria estar justamente orientada para o inverso dessa 'naturalidade' faceira e 'goishtosa'. Há que se ter muita tensão, muito retesamento muscular, muita força nos pulmões, pupilas extremamente dilatadas e orelhas abertas para 360 graus de atenção ao menor sinal de movimento. Existir publicamente demanda um esforço hercúleo, preparo monumental e uma trajetória que não se resolve nas linhas invisíveis de uma internet que faz nublar a inteligência viva em prol dos filtros de fotografias posadas. Aliás, esse é o nosso tempo, que é um tempo de miséria da política e da expressão, da ética e da estética: o homem comum (a saber, medíocre) que veste a faixa presidencial é o mesmo homem comum (a saber, preguiçoso e vaidoso) que sobe ao palco para se dizer ator e mostrar um pouquinho para nós todos o quanto ele é natural e sincero no seu jeito peculiar de ser, fruto dessa indústria da burrice que virou a imagem televisiva, das novelas e afins, que atribui a qualquer mentecapto com o topete penteado o nobre título de ator/atriz. Bolsonaro, o medíocre, está mais perto de nós do que imaginamos. Basta um DRTÊ no bolso e uma água de colônia para refrescar o sovaco.

Que bela profissão a minha, que me ensina cada vez mais a ficar atento para quem eu sou e para o perímetro que habito.



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Cheguei a uma conclusão. Antes acreditava que era culpa nossa, do ódio (ou inveja) que nutrimos uns pelos outros. Mas num é não. Nunca houve uma Cia Estatal de Repertório Dramático nesse brejo-tropycal (quem patrocinava o TBC era o Zampari, um empresário ITALIANO) por uma razão simplérrima: é perigoso demais para o poder instituído. Da música sinfônica à dança - sempre com grupos bancados com algum aporte do governo (OSESP, Cia SP de dança... entre outros) um ator diante de uma plateia soltando o verbo é diferente, coisa deveras ameaçadora para quem tem a rapadura nas mãos. Desde os tempos da Grécia Antiga até hoje é (e continuará sendo) assim: cuidado com o teatro!

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sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

No teatro a palavra é sagrada e perigosa ao mesmo tempo. O ator que tropeça na palavra no teatro não tem como parar o espetáculo para emendá-la ou justificar o seu erro, sua distração, sua falta de habilidade. No teatro o ator carrega o peso e o mérito da palavra. Por ser perigosa e sagrada, ela, a palavra, é necessariamente cuidada, ensaiada, estudada, revirada de cabeça para baixo previamente ao espetáculo com a única intenção de que se possa encontrar uma maneira justa para apresentá-la diante da audiência. E ainda assim nada garante que ela, a palavra, atinja o seu alvo, alcance o público em sua forma cristalina, bem lapidada. Há dias em que a palavra, por mais bem preparada que seja, falha. Há dias em que o ator falha e a palavra naufraga com ele. Esse é o peso que o ator necessariamente carrega consigo: o de ser o porta voz de algo cuja seriedade é incalculável, porque dizer algo é não poder voltar atrás naquilo que se disse, e tropeçar pressupõe carregar consigo o tropeço até o fim e até que se possa esperar pelo dia seguinte - não para pedir desculpas pelo erro da véspera -, mas para novamente colocar-se a serviço, mais uma vez, da palavra e dos riscos inerentes ao que ela compreende. É o próprio perigo da vida, já que existir é também um eterno acumular de histórias e narrativas que formam o nosso passado e nos dirigem adiante. É por isso que ser ator é um ato de civilidade. Porque é preciso preparar-se para ser ator. É preciso muito treino e estudo para não fazer da palavra uma coisa sua, um atributo do seu jeito especial de ser, uma justificativa barata daquele quem você é ou imagina ser. A palavra não é o argumento que faz você ser quem você é, ela é - ou deveria ser - a ponte instável que o liga ao mundo, ao outro. A palavra é sagrada porque ela tem sim poder de cura, mas também de demolição completa. Junta os dois extremos: absolvição e condenação. Por isso que Hamlet diz: cuidai dos atores! Eles são o resumo e a crônica do nosso tempo!... Por isso que Shakespeare diz: o mundo é um palco!... O ator e o teatro são agentes políticos. São arautos da palavra que nos ergue em nossas humanidades e que também nos derruba quando fazemos pouco caso dela. É por isso que Bolsonaro cospe qualquer verbo, porque ele emenda no dia seguinte uma frase que nega o que foi dito. Porque palavra, para esse sujeito, não vale nada, é munição de efeito, prerrogativa para gozar do mundo e dos outros sem desconfiar de que há um preço alto a se pagar com essa atitude hilária, debochada, como se dizer algo publicamente tivesse o mesmo peso que chupar um picolé na esquina de casa, atitude de total desmerecimento a qualquer reverberação de escuta fora dos perímetros daquele que abre a boca para falar. É por isso que estamos na beira do precipício, porque chegamos ao ponto de menosprezar que a palavra mal empregada é o empurrão fatal que nos leva direto e sem escalas ao fundo do poço (poço com 'Ç', e não dois 'SS' como o filho do nazista escreveu na sua plataforma virtual, excelente recurso tecnológico, aliás, de descompromisso para com a autoria da palavra.)


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Uma personagem é sempre uma parte, uma fração. A personagem não é humana, não reúne os destemperos das contradições humanas. Ela pode parecer humana aos olhos da plateia. Aliás, a personagem só é verdadeiramente humana para a plateia, e só para ela. Para o ator ela é uma parte, uma metade de alguma coisa impossível de se completar. E isso sem filosofia nenhuma. A personagem não é humana para o ator porque o que ele tem a fazer dela é arriscar movimentar alguma coisa que já existe pelo esforço do autor que a criou no papel. Portanto, a personagem é uma coisa, um treco de existência concreta pelo intermédio da palavra. E como toda palavra, a personagem é encerrada em frases. Não caminha adiante com o ator depois que o ator sai de cena. Por isso que a personagem é uma parte, algo de inacabado, porque a sua existência é propositalmente e necessariamente inacabada. E ao ator cabe decidir onde segurá-la, quais solavancos imprimir nesse pedaço incompleto de coisa durante determinada fatia de tempo. Mas aí que está a beleza de tudo. Porque o ator também carrega essa qualidade de incompletude, ele também não esgota o sentido que há na personagem porque a sua condição própria é também a de ser alguma coisa não preenchida totalmente. Quando um ator representa uma personagem o que vemos é um exercício infinito de duas potencialidades incapazes de chegar a alguma totalidade, são sempre tentativas fracassadas de se chegar a algum lugar, tropeços sucessivos que resumem esse esforço de dar algum contorno possível ao impossível. Quando testemunhamos uma grande representação estamos sempre diante de um grande tombo. Por essas e outras que, acho eu, ator nenhum dedica-se a compreender a alma humana para imprimir humanidades em suas personagens. Isso é tarefa da antropologia, psicologia, sei lá..., não teatro. Teatro tem mais a ver com uma oficina de montagem, de manipulação de trecos inanimados do que com o mergulho infinito no abstrato das complexidades do homem.

Ufa... Cumprimos com a primeira semana do nosso Estado de Sítio. Voltamos na quinta feira.



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Tanta gente buscando um sentido pra vida, e eu aqui, cumprindo com a tarefa de ir ao teatro de quinta a domingo para vestir um figurino, maquiar o rosto, repetir algumas palavras debaixo de um refletor, depois desvestir o figurino, lavar a cara e voltar para casa para poupar o gogó para no dia seguinte repetir novamente o mesmo protocolo, e tudo de novo, e mais uma vez a mesma coisa. E tudo isso em parceria com outros que entendem o mesmo que eu: não há nada mais enobrecedor da razão da existência de qualquer treco vivente - da ameba acéfala ao homo sapiens pensante -, que respeitar o combinado, agir para resolver um problema dado, e depois complicar tudo de novo para resolver uma outra vez. Vou revelar um segredo: teatro é igualzinho a lavar uma boa pia de louças. Ninguém lava uma pia de louças com ideias, lava-se com as mãos, com os dedos, com o equilíbrio exato entre água e sabão. E depois põem-se tudo para escorrer, para que seja usado de novo, e mais uma vez. Mas e a história de que o ator é um artista, de que ele carrega essa aura da poesia elevada, do sublime feito carne e osso, do canal da emancipação das misérias e sofrimentos humanos? Olha, tudo isso pode estar até incluso no pacote, mas nunca se serve uma boa refeição num prato sujo. O cardápio pode ser 5 estrelas, mas o pavimento de qualquer folhinha de alface deve estar limpo. Teatro é como lavar uma pia de louças, e isso é de uma libertação digna de se registrar nos anais de alguma cartilha do Buda do oriente: entender que a mais profunda satisfação de se estar vivo não está em outra coisa senão em resolver algo simples, pequeniníssimo, sem os arroubos da filosofia abstrata, da gana por alcançar o impossível que vem sempre embalado pelo pacote da ideia que escorre pelos dedos, seja ela qual ideia for.

Olha, experimentem o prazer que há em lavar uma boa pia de louças. É exatamente o mesmo prazer que sinto em fazer teatro. E caso tu sejas desses que não encontra sentido nenhum numa pia de louças, que bota tudo na máquina de lavar, aí eu já lavo as minhas mãos, e abstenho-me de jantar na tua casa. Peço uma pizza.... é mais prático. IFOOD!



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Impossível fazer teatro sem que o que esteja no teatro pertença ao teatro e não à vida em suas ordinárias escalas. Tornar o teatro um apêndice da vida? Que desperdício de inteligência copiar a vida no teatro. Que desperdício de imaginação. E para prejuízo da própria vida, que perde a maravilhosa chance de ser esquadrinhada até o tutano dos ossos quando é revirada de ponta-cabeça pelo teatro que só é teatro porque odeia assumir essa tal vida de indumentária descolorida de loucura.

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Como ando deveras vaidoso e excepcionalmente bajulador da minha inteligência - haja vista que 60 milhões de mulas conterrâneas elegeram um capitão de QI igualável ao de um punhado de alfafa-seca para o cargo máximo do país -, aqui vão os parágrafos iniciais da minha tese de doutorado. E minha reverência eterna aos três pilares que constituem o templo máximo das minhas inspirações: Machado de Assis, Shakespeare e Fernando Pessoa.

1.2 ADVERTÊNCIA!

O presente texto é fruto de uma reflexão bastante particularizada sobre um tipo de teatro, aquele teatro que se mostra através da arquitetura clássica da divisão entre palco e plateia, do edifício teatral que se propõe a separar aquilo que é do universo da cena daquela outra realidade que é a realidade comum aos que ocupam as cadeiras voltadas ao palco. De imediato, proponho a premissa de que o que ocorre no palco é necessariamente uma outra realidade, transformada, modificada, redimensionada da escala ordinária da vida. Ainda que tal proposta implique a consideração de um tipo específico de linguagem poética – um antirrealismo assumido, portanto -, insisto na ideia de que essa hierarquia da arquitetura, em alguma medida, compreende o sentido primeiro do que significa o fazer teatral, que é justamente o de produzir farsa, artificializar o mundo, erigir diferentes fronteiras da imaginação que serviriam como embate aos conhecidos continentes disso que chamamos de real, de verdadeiro. Se a arguição entre o que é verdade e o que é mentira parece, num primeiro momento, um beco sem saída, afinal, quem poderia decretar a pureza de uma correspondência absoluta com a vida, ou, então, a defesa do perfeito faz-de-conta que não se utilizaria de nenhum dos ingredientes do mundo concreto para fazer escoar as suas narrativas (a realidade já é produto de diversas construções que nos permitem ler o real como real, bem como a fantasia carrega em si a sua realidade) por outro lado, elenco a hipótese de que há determinados poetas e autores que sedimentam molduras bastante palpáveis para que as personagens nelas inscritas sejam consequência desse outro território inventado, e não os proponentes de uma dada condição já amalgamada pela humanidade latente em cada uma delas. Em outras palavras, penso que há uma atitude de produzir farsa em quem constrói primeiro os arredores, o cenário da ação, e faz das personagens que habitam esse espaço reféns de coordenadas só possíveis de serem respeitadas mediante às regras espaço-temporais ditadas pela narrativa. Esses poetas, a meu ver, são poetas da hierarquia, da separação entre palco e plateia, da consciência de que há um lá e um cá, e entendem isso que advogo ser a célula mater do fazer teatral: a mentira farseada, a artificialidade como propulsora das personagens e de todo o repertório humano que existe na composição da cena. São poetas teatrais porque são poetas mascarados, que mascaram suas figuras inventadas com demasiado exagero de tintas e cores para poder dotá-las de humanidade. Chegam ao real pela mentira, enfim.

Em paralelo, o texto a seguir é um manifesto contrário à intimidade do ator no exercício de seu ofício de intérprete da cena. O paradoxo é proposital e repete a fórmula acima: como existir diante de uma plateia sem os recursos da intimidade como ferramenta de expressão se o ator já é em si uma individualidade concentrada de experiências particularizadas e pessoais? Complico ainda mais a questão produzindo eu mesmo um relato íntimo de minhas experiências como artista, sempre em primeira pessoa do singular e assinando cada página com a grafia de quem marca uma posição pessoal diante do tema pesquisado. Porém, o que chamo de intimidade é a condição de acúmulo de experiências que não pertencem ao território do partilhável, uma vez que o contato pessoal com qualquer coisa deveria garantir um devido espaço de distanciamento crítico capaz de relativizar o sujeito-atuante do mundo ao seu redor. O íntimo que condeno é aquele que é só meu, inquestionável porque é verdadeiro para mim e reproduz o que sou pela certeza de uma identidade inviolável. Portanto, o texto que segue é repleto de interioridades, uma mistura do que é íntimo com a escuta de uma voz pública que deve funcionar como medida relativizadora entre o que eu sinto e o que penso com aquilo que é comum aos espaços e molduras que necessariamente frequento.



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Há uma crônica maravilhosa do Fernando Pessoa em que o nosso maior poeta de língua portuguesa lamenta-se por haverem descoberto a Pérsia, ou melhor, que a Pérsia - antes um remetente misterioso dos tapetes persas - agora era, de fato, um lugar definitivamente verídico com o nome de Pérsia, e cujos tapetes persas lá seriam devidamente confeccionados. Já nos basta saber que o polo norte está lá onderealmente se situa o polo norte, arremata pesaroso o Pessoa. A desilusão com a comprovação de que os territórios existem seria um belo de um balde de água fria na nossa infinita capacidade de imaginar o inimaginável, de permanecermos ignorantes e com isso forjarmos os nossos próprios continentes impossíveis e inabitáveis. Olha, eu penso o mesmo sobre o ator e essa febre desgraçada em vasculhar a personagem como se a personagem fosse alguma ilha no meio do Atlântico a ser colonizada. E rema-se tanto e desesperadamente em direção à bendita personagem que chegamos ao ponto de fincar uma bandeira bem no meio da testa de Édipo Rei ao mesmo tempo em que inflamos os pulões em destacado orgulho: Édipo Rei existe! E a coisa complica-se ainda mais porque não bastasse descobrir que a personagem existe, é preciso forçar a pobre coitada a existir em nós, a encarná-la, a vivê-la. O ser ou não ser de Hamlet já é frase de efeito direcionada aos atores despreparados. É preciso SER com todas as forças, existir com todos os sentimentos, sofrer como se a personagem nos servisse de pretexto para nossas próprias demandas íntimas e pessoais. O undiscovered country do príncipe da Dinamarca agora tem Waze. Findo o mistério. Finda a assombrosa sensação de distância que sempre houve entre o intérprete e a máscara. E tudo isso começa com Stanislavski, com esse desejo científico de chafurdar, investigar, produzir raio X das vísceras, mapear o antes e o depois, somar o isso e mais o aquilo para descobrir a razão da fatura. Não que Stanislavski não tenha sido um gênio e um homem importantíssimo para o teatro, mas seria mesmo preciso ir além da certeza de que a Pérsia existe? Não bastaria reconhecer o direito de existência da Pérsia sem necessariamente querer colonizá-la? Machado de Assis, nosso escritor conterrâneo de alcance mais universal e atemporal, escreve um conto deslumbrante sobre a metafísica dos chapéus. Quem escolhe o chapéu não é o homem que o veste, é o próprio chapéu que decide qual dono irá forjar embaixo de suas abas. A alma é desenhada de fora para dentro. O dentro é oco, é espaçoso, não preenchido de nada senão de vento. Somos belos e maravilhosos bonecos a serviço de um manipulador invisível. Nossa prisão é a nossa maior libertação. Saber-se cego acerca de quem se é talvez seja o princípio mais maravilhoso de compreensão de nós mesmos e do mundo que nos cerca. Primeiro – e antes de tudo – o TEATRO. Só depois, e bem depois, o ator.


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Uma boa foto de teatro revela a cena, a moldura que está para além do alvo fotografado. E isso significa que é dever da peça de teatro compreender boas cenas. Nada pior do que 'vender' uma peça de teatro com uma fotinho do rosto bem hidratado e simpático do ator. Ou melhor, é um ótimo serviço prestado pelo fotógrafo, que nos diz sem reserva alguma: vá ao cinema!


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Uma das coisas mais legais de se fazer teatro é esse momento em que tudo está terminado, figurinos no cabide, refletores desligados, companheiros de cena cada qual sabe-se lá onde, público evaporado da sua frente, palco e plateia mudos e apagados num silêncio absoluto... e tu sozinho em casa, lambendo uma pizza de mozarela sem precisar triangular a azeitona com ninguém. 

Teatro é tão bom que depois de fazer teatro continua bom, senão ainda melhor.

Viva Dionísio!


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Conversando com um ator alemão, professor de teatro da minha sobrinha, e ele me diz que morava numa cidade na Alemanha cuja população era de 30 mil habitantes e que havia no local um teatro municipal com um corpo estável de atores contratados pelo governo em regime CLT, e que, anualmente, revezavam-se diretores de todo o país para montar diversos espetáculos de variadas estéticas e linguagens. O número total de espectadores, finda a temporada, batia 70 mil (relembrando: a cidade abrigava 30 mil habitantes).

Compreenderam o porquê de elegermos o Capitão para o cargo máximo dessa Terra-das-Bananas? Entenderam o porquê da Regina Duarte ser a eterna namoradinha do Brazyl? Entenderam o porquê desse brejo-tropycal arregimentar legiões de mulas-acéfalas para gritar aleluia senhor Jesus dentro do Templo do Salomão? Entenderam o porquê do Fiuk despontar como um baita ator ao lado da Dri Galisteu?

Mas o importante é ter DRTÊ, né gentê? Ah, que beleza é ter um carimbão na carteira de trabalho! Quantos books e videobooks a gente não descola com um carimbão na carteira de trabalho! Haja propaganda de margarina pra dar conta...

Obs: o ator alemão em questão, o professor de teatro da minha sobrinha, frequentou um UNIVERSIDADE para se tornar ator. Curioso, não?



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Ainda na faculdade, lembro-me de um exercício em que eu representava Édipo e a minha colega a Jocasta. Dávamos as mãos e o texto seguia. Nesse exato instante - sinto como se fosse hoje! - minha companheira de cena começou a acariciar suavemente os meus dedos enquanto dizia suas falas, um gesto invisível à plateia, que funcionava para ela acessar sei-lá-o-quê de verdade da personagem ou dela mesma.Agradeço a ela até hoje. Prometi a mim mesmo NUNCA fazer teatro-de-relação, desses em que o olho-no-olho convida ao embargar da voz, ao turbilhão das lágrimas, ao aconchego da emoção que bate forte no peito. Agora que o tempo passou, já posso ser sincero: minha vontade foi a de desferir um tabefe com luvas de pelica na face rosada da minha interlocutora, e dizer: SAIA JÁ DAQUI, MAMÃE... ops, ou melhor: RAINHA, SUA SAFADA!


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Há um personagem de Tchékhov, talvez o médico Astrov do Tio Vânia, mas posso estar equivocado, que diz em certo momento da peça que daqui a 100 anos seremos todos esquecidos.... Não é uma maravilha poder reunir essa inteligência rasteira - e por isso mesmo dotada de uma filosofia ímpar - que reconhece o minúsculo e o ridículo de nossas vidas banais? Todos: o papa Chico, o pedreiro José, o Trump, a Jana Paschoal, eu, você, todos nós seremos varridos do mapa pela deslumbrante narrativa implacável do tempo. Agora, imagine que delícia se essa mula-acéfala da Damares, a fulana que viu o Filho-do-Pai no pé de goiaba, entendesse, por um segundo que seja, o seu espetacular lugar no fluxo da história toda? Imagine se por um segundo, um segundo que seja, esses tapados reformadores da moral e dos costumes se enxergassem no espelho da novela toda e entendessem que houve um antes e haverá um depois, e que milhares, milhares de estúpidos semelhantes tentaram o mesmo: consertar o que o outro deve ser na vida para se enquadrar nos preceitos do que quer que seja, e que falharam, falharam retumbantemente porque, afinal de contas, tudo é engolido pelo esquecimento?

Imagina que legal se todos soubessem da sua desimportância para o universo?

Sabe por que é legal fazer teatro? Não é tanto pela exposição em cima do palco, não. Para dar conta dessa vaidade da purpurina o Facebook e as selfies já estão aí para nos ajudar. É porque o mais legal é o antes de entrar em cena, os instantes que precedem o subir da cortina em que você tem a dimensão exata de que deverá repetir tudo o que foi combinado ontem. E que isso é um pavor e uma maravilha ao mesmo tempo. Porque é fácil entender que a sua interferência no processo todo é igualmente essencial mas também minúscula. E o que sobra depois dos refletores apagados? A angústia de ter que recolher os pedaços que sobraram para amanhã, mais uma vez e de novo, provar que a sua existência é uma mistura de tropeços, fracassos, sorrisos e conquistas. E que daqui a um punhado de meses tudo ficará para trás, uma nova cortina se erguerá para outro espetáculo que apagará o anterior.

Anotem aí: Cuidado com os atores! (Regina Duarte não conta por uma questão evidente de déficit de QI) Eles são infinitamente mais céticos - e por isso mesmo perigosíssimos! - que a soma de todos esses estúpidos da metafísica do além.

Viva o teatro!



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Há mais espiritualidade dentro do teatro do que nessas biroscas-do-metafísico que botam um altar no palco e prometem a salvação da alma. Há mais chances de se salvar através da sensibilidade e da inteligência do que por intermédio da histeria servil por um Deus-Patrão levada a cabo por péssimos atores travestidos de funcionários do firmamento.

Por um mundo com mais Shakespeare e menos evangelhos...

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Penso na tristeza que deve ser construir monumentos, desses trecos que uma vez erguidos no espaço, o tempo haverá de preservá-los para além do seu criador. É comum passar desapercebido por essa monstruosa constatação? De que o prédio em que moramos há de permanecer, senão exatamente igual, ao menos fiel ao que sempre foi desde o seu início, com seus tijolos concordando com o concreto armado, seu perímetro em acordo com sua altura, mudando poucas coisas em seu caráter de coisa feita para durar, e durar para depois daquele que o criou, condenado a ficar pelo caminho? Dormirei hoje com essa melancolia aliada à alegria de existir para não durar, oferecer monumentos que explicitamente desmoronam diante de quem resolve habitá-los. É uma sorte contaminada por uma vaidade maravilhosa, eu diria. Porque assumir essa perenidade é sublinhar a importância que temos, uma vez que a distração do olhar pode fazer escorrer para sempre o brilho da nossa presença. Anunciamos a nossa morte somente para que os outros não desperdicem os intervalos que nos fazem vivos. Dizemos: aproveitem, somos deveras maravilhosos para permanecer ad-infinitum feito estátuas fincadas no chão. Somos arquitetos às avessas, trabalhamos para o desmonte, ou desmontamos antes mesmo de firmar trato com a ambiciosa eternidade das coisas concretas. E, talvez por isso mesmo, somos magnificamente concretos, inteiros numa medida mais digna que o maior dos espigões de aço e cimento dessa cidade lotada de monstrengos semelhantes, quase siameses.

Vou dormir com a certeza da beleza de minha profissão de ator de teatro, que não me poupa uma única gota de suor, um único músculo preguiçoso, tudo em direção ao mais completo esquecimento, ao instante que não assina contratos, não promete visitas futuras, não deixa heranças... Saldo de uma sensação de liberdade absoluta daqueles que, como eu, tem a benção de experimentar e viver a própria ruína.

Viva!



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Em tempos de histeria por conhecer a si mesmo, dizer aos outros quem se é, o que se sente e desejar exatamente o mesmo dos vizinhos: revela-te ou condeno-te (olha eu aqui revelando uma indignação minha!) não é pedagógica a ideia, ou no mínimo um refresco para essa ditadura da verdade que exige a soma 1 +1 = 2, que o ator seja um dissimulador, aquele que se esconde, não aparece, presta-se a representar o que ele não é pela simples razão de que o conhecimento sobre si mesmo é propositalmente falho já que todos os seus esforços estão direcionados a dar forma a um corpo que não pode ser o seu, a uma voz cujo timbre não combina com o natural dos seus dias? Essa ocupação com a periferia de si mesmo outorga ao ator uma alforria de ter de ser ele o tempo inteiro fiel ao que lhe passa na intimidade, e expor aos outros a enxurrada de sentimentos que, ao fazê-lo - sinal dos tempos! -, torna-o emblema de coragem e honestidade. E se a honestidade estivesse no extremo oposto, na capacidade de nada extravasar e manter total distância das tentações do que se entende por verdadeiro? Já dizia Shakespeare que o ator alcança a verdade sobre quem somos - o teatro é o espelho da natureza, o mundo é um palco -, mas, acredito, essa sentença não se dá pela correspondência de uma condição de integridade da alma. Ao contrário. A única verdade de que o ator dispõe diante de nós é a de que o homem, para sobreviver, articula todos os recursos da dissimulação de quem sobe ao palco para trabalhar no ofício próprio da dissimulação. A verdade indigesta é somente essa: o ator não diz quem somos, ele apresenta a quantidade infinita de máscaras, de personagens, que no correr da vida lançamos mão quer queiramos ou não. Talvez por essa razão o Facebook seja um perfeito cardápio da nossa total imperícia em sermos atores nos dias que seguem. Esse convite sempre sedutor que indaga 'o que você está pensando hoje?' seria a primeira coisa a ser subtraída de alguém que deseja emprestar-se à tarefa de representar qualquer papel. O pensamento do ator nunca é sobre si mesmo, tampouco sobre o outro. Quem monta um castelo de cartas de baralho não está ocupado com crise nenhuma, com nada abstrato e revelador da alma que fuja do esforço de tapar a respiração para que um único e minúsculo vento não desmorone todo o império erguido.

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