sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Em tempos de histeria por conhecer a si mesmo, dizer aos outros quem se é, o que se sente e desejar exatamente o mesmo dos vizinhos: revela-te ou condeno-te (olha eu aqui revelando uma indignação minha!) não é pedagógica a ideia, ou no mínimo um refresco para essa ditadura da verdade que exige a soma 1 +1 = 2, que o ator seja um dissimulador, aquele que se esconde, não aparece, presta-se a representar o que ele não é pela simples razão de que o conhecimento sobre si mesmo é propositalmente falho já que todos os seus esforços estão direcionados a dar forma a um corpo que não pode ser o seu, a uma voz cujo timbre não combina com o natural dos seus dias? Essa ocupação com a periferia de si mesmo outorga ao ator uma alforria de ter de ser ele o tempo inteiro fiel ao que lhe passa na intimidade, e expor aos outros a enxurrada de sentimentos que, ao fazê-lo - sinal dos tempos! -, torna-o emblema de coragem e honestidade. E se a honestidade estivesse no extremo oposto, na capacidade de nada extravasar e manter total distância das tentações do que se entende por verdadeiro? Já dizia Shakespeare que o ator alcança a verdade sobre quem somos - o teatro é o espelho da natureza, o mundo é um palco -, mas, acredito, essa sentença não se dá pela correspondência de uma condição de integridade da alma. Ao contrário. A única verdade de que o ator dispõe diante de nós é a de que o homem, para sobreviver, articula todos os recursos da dissimulação de quem sobe ao palco para trabalhar no ofício próprio da dissimulação. A verdade indigesta é somente essa: o ator não diz quem somos, ele apresenta a quantidade infinita de máscaras, de personagens, que no correr da vida lançamos mão quer queiramos ou não. Talvez por essa razão o Facebook seja um perfeito cardápio da nossa total imperícia em sermos atores nos dias que seguem. Esse convite sempre sedutor que indaga 'o que você está pensando hoje?' seria a primeira coisa a ser subtraída de alguém que deseja emprestar-se à tarefa de representar qualquer papel. O pensamento do ator nunca é sobre si mesmo, tampouco sobre o outro. Quem monta um castelo de cartas de baralho não está ocupado com crise nenhuma, com nada abstrato e revelador da alma que fuja do esforço de tapar a respiração para que um único e minúsculo vento não desmorone todo o império erguido.

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