sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

No teatro a palavra é sagrada e perigosa ao mesmo tempo. O ator que tropeça na palavra no teatro não tem como parar o espetáculo para emendá-la ou justificar o seu erro, sua distração, sua falta de habilidade. No teatro o ator carrega o peso e o mérito da palavra. Por ser perigosa e sagrada, ela, a palavra, é necessariamente cuidada, ensaiada, estudada, revirada de cabeça para baixo previamente ao espetáculo com a única intenção de que se possa encontrar uma maneira justa para apresentá-la diante da audiência. E ainda assim nada garante que ela, a palavra, atinja o seu alvo, alcance o público em sua forma cristalina, bem lapidada. Há dias em que a palavra, por mais bem preparada que seja, falha. Há dias em que o ator falha e a palavra naufraga com ele. Esse é o peso que o ator necessariamente carrega consigo: o de ser o porta voz de algo cuja seriedade é incalculável, porque dizer algo é não poder voltar atrás naquilo que se disse, e tropeçar pressupõe carregar consigo o tropeço até o fim e até que se possa esperar pelo dia seguinte - não para pedir desculpas pelo erro da véspera -, mas para novamente colocar-se a serviço, mais uma vez, da palavra e dos riscos inerentes ao que ela compreende. É o próprio perigo da vida, já que existir é também um eterno acumular de histórias e narrativas que formam o nosso passado e nos dirigem adiante. É por isso que ser ator é um ato de civilidade. Porque é preciso preparar-se para ser ator. É preciso muito treino e estudo para não fazer da palavra uma coisa sua, um atributo do seu jeito especial de ser, uma justificativa barata daquele quem você é ou imagina ser. A palavra não é o argumento que faz você ser quem você é, ela é - ou deveria ser - a ponte instável que o liga ao mundo, ao outro. A palavra é sagrada porque ela tem sim poder de cura, mas também de demolição completa. Junta os dois extremos: absolvição e condenação. Por isso que Hamlet diz: cuidai dos atores! Eles são o resumo e a crônica do nosso tempo!... Por isso que Shakespeare diz: o mundo é um palco!... O ator e o teatro são agentes políticos. São arautos da palavra que nos ergue em nossas humanidades e que também nos derruba quando fazemos pouco caso dela. É por isso que Bolsonaro cospe qualquer verbo, porque ele emenda no dia seguinte uma frase que nega o que foi dito. Porque palavra, para esse sujeito, não vale nada, é munição de efeito, prerrogativa para gozar do mundo e dos outros sem desconfiar de que há um preço alto a se pagar com essa atitude hilária, debochada, como se dizer algo publicamente tivesse o mesmo peso que chupar um picolé na esquina de casa, atitude de total desmerecimento a qualquer reverberação de escuta fora dos perímetros daquele que abre a boca para falar. É por isso que estamos na beira do precipício, porque chegamos ao ponto de menosprezar que a palavra mal empregada é o empurrão fatal que nos leva direto e sem escalas ao fundo do poço (poço com 'Ç', e não dois 'SS' como o filho do nazista escreveu na sua plataforma virtual, excelente recurso tecnológico, aliás, de descompromisso para com a autoria da palavra.)


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