sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Há uma crônica maravilhosa do Fernando Pessoa em que o nosso maior poeta de língua portuguesa lamenta-se por haverem descoberto a Pérsia, ou melhor, que a Pérsia - antes um remetente misterioso dos tapetes persas - agora era, de fato, um lugar definitivamente verídico com o nome de Pérsia, e cujos tapetes persas lá seriam devidamente confeccionados. Já nos basta saber que o polo norte está lá onderealmente se situa o polo norte, arremata pesaroso o Pessoa. A desilusão com a comprovação de que os territórios existem seria um belo de um balde de água fria na nossa infinita capacidade de imaginar o inimaginável, de permanecermos ignorantes e com isso forjarmos os nossos próprios continentes impossíveis e inabitáveis. Olha, eu penso o mesmo sobre o ator e essa febre desgraçada em vasculhar a personagem como se a personagem fosse alguma ilha no meio do Atlântico a ser colonizada. E rema-se tanto e desesperadamente em direção à bendita personagem que chegamos ao ponto de fincar uma bandeira bem no meio da testa de Édipo Rei ao mesmo tempo em que inflamos os pulões em destacado orgulho: Édipo Rei existe! E a coisa complica-se ainda mais porque não bastasse descobrir que a personagem existe, é preciso forçar a pobre coitada a existir em nós, a encarná-la, a vivê-la. O ser ou não ser de Hamlet já é frase de efeito direcionada aos atores despreparados. É preciso SER com todas as forças, existir com todos os sentimentos, sofrer como se a personagem nos servisse de pretexto para nossas próprias demandas íntimas e pessoais. O undiscovered country do príncipe da Dinamarca agora tem Waze. Findo o mistério. Finda a assombrosa sensação de distância que sempre houve entre o intérprete e a máscara. E tudo isso começa com Stanislavski, com esse desejo científico de chafurdar, investigar, produzir raio X das vísceras, mapear o antes e o depois, somar o isso e mais o aquilo para descobrir a razão da fatura. Não que Stanislavski não tenha sido um gênio e um homem importantíssimo para o teatro, mas seria mesmo preciso ir além da certeza de que a Pérsia existe? Não bastaria reconhecer o direito de existência da Pérsia sem necessariamente querer colonizá-la? Machado de Assis, nosso escritor conterrâneo de alcance mais universal e atemporal, escreve um conto deslumbrante sobre a metafísica dos chapéus. Quem escolhe o chapéu não é o homem que o veste, é o próprio chapéu que decide qual dono irá forjar embaixo de suas abas. A alma é desenhada de fora para dentro. O dentro é oco, é espaçoso, não preenchido de nada senão de vento. Somos belos e maravilhosos bonecos a serviço de um manipulador invisível. Nossa prisão é a nossa maior libertação. Saber-se cego acerca de quem se é talvez seja o princípio mais maravilhoso de compreensão de nós mesmos e do mundo que nos cerca. Primeiro – e antes de tudo – o TEATRO. Só depois, e bem depois, o ator.


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