domingo, 27 de novembro de 2016

Teatro é essa combinação precária entre o imediato e o ensaiado. É um teste para ver se o que foi pensado e praticado dá certo diante da plateia. E ponto. Ás vezes dá certo, outras vezes dá errado. E é assim é que é. Ocorre que em muitos casos se advoga uma erudição exacerbada ao teatro, como se o personagem escrito pelo autor fosse quase um monumento saído de uma tese acadêmica, como se o ator fosse um cientista da alma e necessitasse chafurdar em seu interior em busca de alguma criatividade escondida entre as tripas abstratas do espírito... Não me parece que teatro seja isso. É mais simples que isso, e nem por isso é coisa fácil fazer teatro. Me parece que subir ao palco exige muito mais uma irresponsabilidade-consciente do que um trabalho antropológico de conhecimento de quem nós somos, de onde viemos e para onde vamos. Teatro não é uma ciência social ou filosofia, é uma arte de fazer coisas, como também é arte de fazer coisas o ofício de fabricar bancos de madeira, costurar roupas, tocar um instrumento musical. Há que se reconhecer que há mistérios suficientes nesses ofícios em que, num primeiro olhar, tudo parece bastante raso, óbvio e transparente. Shakespeare é genial porque é popular, contava histórias para o povo que ia ao teatro ansioso por ouvir histórias. Se as histórias fossem boas, o povo prestava atenção; se as histórias fossem ruins, tomates eram arremessados. É preciso que alguém calcule a tremenda perda de senso democrático na relação entre espectador e ator com o sumiço dos tomates nas salas de espetáculo... E o ator shakespeariano, lá atrás, quando subia ao palco, o fazia com a tarefa de dizer uma série de palavras que não eram as suas palavras. E ponto. Se fosse bom, era porque era bom. Se fosse péssimo, é porque, de fato, ele era péssimo. E só. Não precisava-se fazer laboratórios prévios, imersões prufundas na gênese da personagem, ou, enfim, participar de alguma vivência em sabe-se lá qual praia distante para entender os fluxos da maré em noite de lua cheia... Não! O ator só precisava reunir um tanto de coragem para subir ao palco e dar sua cara à tapa diante daqueles que lá estavam para avaliar a sua performance. Mas aí veio o século da psicologia, o tempo do eu-comigo-mesmo, do estudo das motivações que explicam as razões de sermos quem somos. E o teatro entrou nessa onda. E o prazer da brincadeira irresponsável ficou em segundo plano. A personagem virou uma entidade a ser idolatrada, revirada de cabeça para baixo, rasgada, destruída, desmontada e colada novamente. Antes a máscara já era a personagem. A artificialidade da mascara sustentava o sentido que havia na brincadeira de representar uma personagem, e a expressão vinha em primeiro lugar. Hoje é o sentimento. E a necessidade de sentir-se a si mesmo para ser verdadeiro parece que trouxe o próprio ator à frente do seu ofício. É o ator o que importa, a sua verdade de ator, o seu despudoramento de mostrar-se ator diante da plateia. O teatro, nessas bases, quase virou um divã. Às vezes o teatro de agora é só isso mesmo: um belo de um divã insuportavelmente enfadonho e carregado de crises que em nada contribuem para uma simples comunicação direta com a plateia. Porque não há comunicação possível em um evento em que a vontade primordial, ainda que inconsciente, é exibir-se. E parece que também a nossa plateia de hoje é mais afeita a deixar-se deprimir e recostar a cabeça num divã. Sumiram os tomates das mãos dos espectadores, sumiu também o riso largo, a reação espontânea. Mas, o teatro popular parece resistir. O teatro popular com o seu grande apelo ao fato concreto de se estar em cena para entreter o público livra-se dessa enxurrada de métodos, compêndios dramáticos, laudas investigativas. No teatro popular a equação é simples: a coisa é porque é assim que tem que ser. A coisa começa porque a cortina se abriu, e tudo acaba quando apagam-se as luzes. A mentira é revelada e é parte constituinte e essencial do ato poético. É mais simples. É mais generoso. É menos pedante e pretensioso. O teatro popular nos salva da nossa tendência contemporânea ao ensimesmamento, a mimação dramática. Ainda bem! Um viva ao teatro popular!


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