sábado, 20 de fevereiro de 2016

Vivemos nos tempos dos artistas molengas, dos artistas frouxos. Digo artistas de fato, do ofício da coisa. Não se reage a nada porque são todos - ou quase todos -, os artistas de farto, artistas de rabo preso com órgãos públicos, editais de sei-lá-o-quê, fiéis devedores de empresas financiadoras, funcionários da empresa tal. O que era transgressão, princípio básico de uma comunicação quase suicida - o experimento que se alimentava do próprio ato de experimentar (algo de ingenuidade infantil e de coragem despropositada) -, virou coisa mansa, de gente preocupada com a repercussão das suas palavras e imagens iluminadas debaixo dos refletores. São todos molengas. Somos molengas. E assim o somos porque é preciso sobreviver, porque é preciso pertencer à turma que transmite mensagens palatáveis, deglutíveis, justas para alguma coisa que deve brotar fora dela, e germinar flores de aromas agradáveis. O hall do teatro agora é mais importante do que o teatro: ou saímos batendo selfies com os espectadores, ou, então, apertando as mãos dos colegas correligionários. O palco é mera extensão do discurso, não mais o próprio discurso. É preciso justificar o ato de existir com laudas de argumentos que o tornem uma pessoa legal às vistas de uma banca de ideólogos de plantão. E nos acostumamos com isso. E desejamos isso. E vem por aí hordas e mais hordas de um outro tipo de artista, o artista preocupado com o futuro do mundo, o artista de ONG, um artista que pertence ao desejo fundamental de desaparecer por completo com qualquer identidade particular, de verdade íntima e particular, para pertencer à turma, aos compadres, àqueles que são tantos e ninguéns ao mesmo tempo - ser um indivíduo dotado de individualidade com CPF e RG próprios é uma sentença de egoísmo criminoso para esse outro tipo de artista em emergente ascensão. São os artistas engajados na ideia, unidos, firmes e sedimentados por argumentos ótimos, mas esvaziados de energia expressiva, destituídos de qualquer tônus, portadores de vozes mixurucas, quase inaudíveis em sua ínfima moldura de existência. Perdemos até mesmo o contato com o público. A plateia nos é indiferente porque não é mais para ela que fazemos o que fazemos. Fazemos o que fazemos para ajustarmo-nos aos editais, ao governo, à empresa financiadora, ao mundo que diz: seja assim que eu te dou o aval para sua sobrevivência. Saudades dos artistas malditos, intragáveis, pestilentos, marginais, insuportavelmente insistentes na sua expressão única que era única porque era íntima, intransferível e particular. As saudades que tenho não são só por esses artistas que cada vez mais rareiam, ou estão chochos, reclusos na sua falta de coragem ou inteligentes em suas técnicas de sobrevivência, as saudades que tenho é da arte mesmo, que quando perde sua função primordial de incomodar, remar contra, não satisfazer nada a que diga respeito ao que habita fora dela, perde, também, a sua própria e única identidade de arte. Viramos todos, ou quase todos, retóricos de academia, simpatizantes de movimentos sociais, plateia de bla-bla-bla ideológico. Somos cada vez menos corpo, sangue, suor, lágrimas e risos. Dionísio cada vez mais veste toga, e menos rasteja o sexo no chão. Domesticamo-nos. Todos, ou quase todos.


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