quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Machado, por ora roído pelos vermes, ficaria orgulhoso!


 É consenso dizer que fazer rir é mais difícil que o seu oposto, que para derramar lágrimas bastam alguns efeitos e ambiente propício onde o espectador encontre espaço de marejar os olhos. E é verdade. Verdade porque o riso tem a ver com a inteligência e eco público, enquanto a emoção é coisa específica do coração, íntima e quase nunca compartilhada com o vizinho. Quem comprova isso não sou eu, mas o monumental estudo do filósofo francês Henri Bergson ( 1859 - 1941 ) sobre o assunto. O livro chama-se ‘O Riso’, e trata das motivações que nos levam a rir, entendendo que tal reação é, sobretudo, uma evocação social. Agora, se o riso exige cumplicidade, é evidentemente mais complicado marchar em uníssono com parcerias de jornada do que promover ‘enclausuramentos’ propositais. Pensar é outro atributo fundamental para que haja o riso, afinal, só se ri do que se entende, ao passo que a sensibilidade emotiva tem a qualidade de ganhar o canal da alma sem a presença de gramática alguma. Veja por exemplo a música. As sonatas de piano de Beethoven são altamente sentimentais, e por elas não se precisa dedicar compreensão prévia alguma. Basta ouvi-las e pronto. A comédia é outro assunto. E quando funciona no palco, é arrebatadora. Foi o que tivemos a chance de experimentar no Teatro Municipal com o excelente espetáculo do Grupo Teatro Químico, uma divertidíssima transcriação da obra-prima de Machado de Assis, O Alienista.

Investindo em uma dramaturgia composta por diversas camadas narrativas – a literatura é ponte para o jogo entre os atores -  o espetáculo transforma o nosso Bruxo do Cosme Velho num arauto popular das mazelas sofridas quando apostamos nas unanimidades dos conceitos. Classificar a loucura em sua seara científica – é afinal possível defender na teoria o que é um comportamento louco? -  ganha ainda mais contornos absurdos e patéticos quando o esforço passa a ser identificar quem é ou não demente, embaralhando as certezas na medida em que também embaralha-se o olhar de quem se dispõe a ver no outro o mundo que imagina estar vendo. Não conto aqui a sinopse da peça! A quem possa se interessar pelo que agora escrevo – e espero que se interessem - que siga correndo essa companhia de malucos da cena e testemunhe com os próprios olhos a qualidade poética que eu tive a sorte de experienciar como espectador.

Machado de Assis (1839 - 1941 ), assim como Shakespeare ( 1564 - 1616 ), dois monumentos da palavra, parecem alcançar a mesmíssima conclusão. Enquanto o inglês diz que o mundo é um palco, e nós, humanos, pobres personagens com tempo curto de duração, o nosso representante tupiniquim chega perto do Bardo ao escrever um capítulo inteiro de Dom Casmurro dedicado a provar que é um ópera o que dançamos em vida, cabendo o libreto à Deus, enquanto o diabo compõe a música da orquestra. Valsamos todos, representamos os mais diversos papéis também. Até que a vitrola pife, até que a cortina interrompa os solilóquios. Há muita margem para sofrimento nessas entrelinhas, mas também muita margem para o riso.

Shakespeare e Machado só são grandes, indiscutivelmente, porque são populares, e as opções por recortar a narrativa, realçar a dramaticidade de cenas específicas, compor personagens fundamentados na máscara e num exímio trabalho corporal e vocal, só enaltece a inteligência desses artistas do Teatro Químico, elevando a qualidade da palavra impressa ao patamar de comunicação imediata com a plateia, ela toda visivelmente entregue ao prazer de participar de tão engenhoso jogo. O que pôde se ver no palco do Municipal nesse vigésimo nono Festivale é teatro da melhor qualidade, uma feliz combinação de excelência entre direção, interpretação e dramaturgia.

Escrevo essas considerações ainda de madrugada, exatamente logo após a apresentação do trabalho, e, ainda que cansado, quando o teatro é bom nem as pestanas sonolentas respeitam o desejo do corpo de desligar. As ideias que brotam são como arautos iluminados, acendendo a cabeça e pedindo ao corpo licença para durar.



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