Investindo em uma dramaturgia composta por diversas camadas
narrativas – a literatura é ponte para o jogo entre os atores - o espetáculo transforma o nosso Bruxo do
Cosme Velho num arauto popular das mazelas sofridas quando apostamos nas unanimidades
dos conceitos. Classificar a loucura em sua seara científica – é afinal
possível defender na teoria o que é um comportamento louco? - ganha ainda mais contornos absurdos e
patéticos quando o esforço passa a ser identificar quem é ou não demente,
embaralhando as certezas na medida em que também embaralha-se o olhar de quem
se dispõe a ver no outro o mundo que imagina estar vendo. Não conto aqui a
sinopse da peça! A quem possa se interessar pelo que agora escrevo – e espero
que se interessem - que siga correndo essa companhia de malucos da cena e
testemunhe com os próprios olhos a qualidade poética que eu tive a sorte de
experienciar como espectador.
Machado de Assis (1839 - 1941 ), assim como Shakespeare ( 1564 - 1616 ),
dois monumentos da palavra, parecem alcançar a mesmíssima conclusão. Enquanto o
inglês diz que o mundo é um palco, e nós, humanos, pobres personagens com tempo
curto de duração, o nosso representante tupiniquim chega perto do Bardo ao
escrever um capítulo inteiro de Dom Casmurro dedicado a provar que é um ópera o
que dançamos em vida, cabendo o libreto à Deus, enquanto o diabo compõe a
música da orquestra. Valsamos todos, representamos os mais diversos papéis
também. Até que a vitrola pife, até que a cortina interrompa os solilóquios. Há
muita margem para sofrimento nessas entrelinhas, mas também muita margem para o
riso.
Shakespeare e Machado só são grandes, indiscutivelmente,
porque são populares, e as opções por recortar a narrativa, realçar a
dramaticidade de cenas específicas, compor personagens fundamentados na máscara
e num exímio trabalho corporal e vocal, só enaltece a inteligência desses
artistas do Teatro Químico, elevando a qualidade da palavra impressa ao patamar
de comunicação imediata com a plateia, ela toda visivelmente entregue ao prazer
de participar de tão engenhoso jogo. O que pôde se ver no palco do Municipal
nesse vigésimo nono Festivale é teatro da melhor qualidade, uma feliz
combinação de excelência entre direção, interpretação e dramaturgia.
Escrevo essas considerações ainda de madrugada, exatamente
logo após a apresentação do trabalho, e, ainda que cansado, quando o teatro é
bom nem as pestanas sonolentas respeitam o desejo do corpo de desligar. As
ideias que brotam são como arautos iluminados, acendendo a cabeça e pedindo ao
corpo licença para durar.
...
...
Nenhum comentário:
Postar um comentário