Perder uma história é perder o sentido de viver. Se há
alguma vantagem em ser quem somos ela está no fato de termos a sorte e audácia
de poder fugir da vida para reencontrá-la nesse terreno mais fundamental que é
a imaginação. Mas para isso é preciso exercitá-la, ter a coragem de acionar as
válvulas da criatividade, inventar personagens impossíveis, descobrir outras
cores para outros universos, fazer do inanimado organismos despertos, cantar
músicas para que o vento as sopre ao longe sem desejos de retorno. Mas também é
perigoso e arriscado semear esse solo do impossível, afinal, se tudo está por
ser criado, quantas não são as tentações por desistir de tanto esforço e
deixar-se levar pelo pavimento da realidade, todo ele já pronto para que o
fluxo da vida seja cumprido sem maiores percalsos ou suores desnecessários?
O espetáculo ‘De onde vêm as histórias de Clarice’, levado
ao palco do teatro Dailor Varela durante a programação do vigésimo nono
Festivale, é uma verdadeira pérola lapidada com extremo cuidado e talento pelos
excelentes artistas do grupo de Teatro Tecelagem. A peça inicia-se com as
lágrimas de uma menina de nome Clarice, triste por haver perdido a história de
seu cachorro. A partir de então, e recorrendo às histórias infantis da
escritora Clarice Lispector, a empreitada reúne ao redor da protagonista três
outros personagens que a ajudarão a inventar uma nova fábula para o seu
animalzinho de estimação. Outros bichos inscritos na literatura de Lispector
entram em cena para tentar explicar os mecanismos de construção de de suas
próprias histórias, fazendo das personagens detetives em busca de uma solução
criativa ao dilema da menina.
Assistir a bom teatro significa também prestar atenção à
qualidade de interesse da plateia. E lá estava ela, formada em quase sua
totalidade por crinaças vidradas na performance de artistas que transitavam com
naturalidade entre narrativa, cenas dramáticas e números musicais lindamente
executados. O gurpo soube muito bem lidar com a simplicidade dos recursos
cênicos para fazer disso o sentido último da mensagem já apontada no início do
texto: inventar é coisa simples, basta botar a cabeça para funcionar e ter
certa dose de paciência e interesse. A criança, ainda não contaminada pelas
responsabilidade da fase madura, compreende a lição oferecida, entregando-se
completamente ao prazer de desfrutar de tantas brincadeiras contidas no
espetáculo.
Às vezes paira um certo preconceito dos adultos com relação
a esse gênero de teatro destinado às crianças, eu mesmo, admito, apresento-me
como um desses apregoadores da maturidade dos discursos da cena. Mas, de fato,
os mentecaptos somos nós, eu como presidente do clube, que desmancham tamanha
prepotência com um simples abrir de cortinas, quando algo de qualidade
inequívoca toma conta do palco. Aí não importa ser ou não criança. Aliás,
reconheço agora, talvez seja inveja profunda, ou, então, tristeza em saber que
o tempo não volta para trás.
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