sábado, 13 de setembro de 2014

A Nau dos Desterrados


Os loucos! Dêem passagem aos loucos! Náufragos desordeiros entregues ao desejo de saciar os instintos mais primitivos. Nessa embarcação sem lei nenhum código moral resiste aos anseios do corpo. Curioso instante esse em que navegávamos sem rumo e ainda refratários ao peso de ter de prestar contas à terra firme e suas convenções. Éramos livres! A ausência completa de vínculos, o deixar-se simplesmente levar pelo movimento das ondas, eis aí um tempo de devaneio perdido, há muito abandonado pela racionalidade. As iluminações do espírito seguidas das abstrações intangíveis ao ato de pensar lançaram âncora então. Àquilo que se tocava, sentia e vivia coube passagem à fumaça crítica dos sábios das academias, ao pensamento especulativo , e chegamos, portanto, ao terreno das teorias do quadro negro. O extase festivo por celebrar os prazeres da carne é outra coisa, não necessita de qualquer justificativa, é ele próprio um ato revolucionário sem equações a respeitar. A festa nada quer dizer, ela é festa porque se contenta em celebrar, implodindo hierarquias, rompendo fronteiras, e recuperando, enfim, o sentido dionisíaco da orgia, um permitir-se abandonar com a multidão e comungar de sua alegria.

O que vimos no espetáculo ‘A Nau dos Desterrados’ é a prova cabal de que teatro é também comunhão, aldeia formada na rua e sem mediações outras senão a do convite sedutor do artista popular que com sua graça simples e potente faz da plateia massa de celebradores, e, juntos, inventam um sedutor intervalo de subverção instaurado pelo rito da festa. O mito não sobrevive sem rito, e o conjunto inspirado de atores formadores da Cia de 2 aproveita isso na essência. Tudo é dionisíaco nessa proposta de acompanhar a história de piratas que aportam na terra de Cabral. A bebida, a música, a dança, os apelos sexuais e eróticos, todos elementos fundadores do teatro lá atrás, na Grécia antiga. Muito antes da ‘institucionalização’ das convenções cênicas dentro das arenas o teatro era exatamente o que pudemos experimentar numa noite fria de São José dos Campos: o contato humano em sintonia com o prazer de romper com as fronteiras ordinárias de uma vida civilizada, completa carnavalização onde os papéis de cidadãos ordeiros podem descançar em merecidas férias.

Acerta o Festivale ao incluir em sua programação um espetáculo dessa qualidade, seja porque os tempos nos indicam uma falsa ideia de liberdade de expressão, vigiada bem de perto pelos arautos invisíveis da opinião pública, fiscais do politicamente correto, seja porque - e talvez aí uma razão mais ainda fundamental -, é dever do teatro não perder nunca o seu contato com a praça, com o público, desmistificando assim que o artista é coisa especial, distante das suas origens gregárias.

O filósofo mediaeval Erasmo de Roterdã (1466 – 1536), em seu famoso tratado ‘Elogio da Loucura’ , faz um lindo e pertinente manifesto em favor de todos esses malucos que sobrevivem à margem dos perímetros legais da sociedade, dentre eles os artistas. Graças a Deus, ou melhor, a Dionísio, que ainda sobram entre nós alguns que levam ao pé da letra o sentido de praticar a mais completa das transgressões, qual seja, a de promover o desequilíbrio entre as faculdades mentais elevadas, ainda que seja durante um breve instante – e melhor ainda! -, num momento de alegria e festa!

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