sábado, 13 de setembro de 2014

Sananab


A máscara é o elemento emblemático que caracteriza a natureza humana. Somos tão adeptos dela que a vestimos em todos os instantes da vida sem disso fazer cerimônias. Somos mascarados por consciência desenvolvida, por necessidade de sobrevivêcia. Fôssemos nós portadores de rostos limpos naufragaríamos na primeira esquina!  Quem suportaria os arroubos da sinceridade espontânea? Falássemos sempre o que nos passa ao coração e o destino mais certo seria a mais completa exclusão do perímetro social. Como um grande teatro que vive por conveniências e encenações programadas, a vida sustenta-se nessa escala de hipocrisias e fingimentos. O ator é o emblema poético disso: sabe que finge, e é ainda melhor quando convence os outros de que o seu fingimento é sincero, genuíno. Há aqui, portanto, outra qualidade digna de realce: em matéria de arte, gostamos e desejamos o engano! Queremos a toda custa acreditar nas mentiras que nos contam.

Se o personagem é a máscara que cabe ao ator, o ator que interpreta um palhaço como personagem experimenta uma curiosa qualidade de caráter, formando ao redor da sua figura (portadora de um nariz falso!) uma moral translúcida, incapaz de mentir. Invejamos o palhaço porque ele é a reprodução literal de uma consciência precária, ainda pouco desenvolvida nas artimanhas da sobrevivência. O palhaço é essa entidade pura que a tudo reage sem julgamentos críticos ou a certeza de que suas ações sofrerão reprimendas e censuras. O palhaço tem a mesma alma da criança, dos loucos, dos velhos senis, daqueles, enfim, que margeiam o trilho da normalidade. São, portanto, todos belos e cândidos, mas  muitas vezes também cruéis e sombrios, dinamitando a ideia moralmente aceita de que há um limite entre o bom e o mau. Não há espaços aqui para essa praga de comportamento inspirada no politicamente correto.   

O solo do palhaço Bisgoio no espetáculo ‘Sananab’, trabalho levado ao Festivale pela Cia Pé de Chinelo, é algo incrível de se testemunhar exatamente por legitimar as impressões apontadas acima. Através de uma sequência de números simples, mas nem por isso destituídos de lirismo e beleza, o ator estabelece um contato direto com a plateia ao defender a esperteza dessa criatura entalhada unicamente na ingenuidade. O mundo do palhaço Bisgoio, parece, não é o mundo do futuro, das especulações, tampouco da narrativa estruturada. Tudo o que é feito é feito aos pedaços, em domínios reduzidos, havendo como intuito único satisfazer a uma necessidade que lhe é imediata, e, assim, dar-nos também uma outra e importante lição: a de que o nosso baú repleto de máscaras complexas quase sempre nos afasta do tempo presente, daquilo que não conseguimos ser porque o esforço é imaginar o que ainda não pode existir.

Em tempos de acúmulo de tudo: posses, dinheiro, expectativas, sonhos e projetos, o Festivale brinda o espectador com um verdadeiro espetáculo de talento onde não há nenhuma pirotecnia, onde o vazio e os poucos recursos cênicos estão a serviço dessa outra máscara mais essencial, a que revela tudo sem nada esconder.




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