A máscara é o elemento emblemático que caracteriza a
natureza humana. Somos tão adeptos dela que a vestimos em todos os instantes da
vida sem disso fazer cerimônias. Somos mascarados por consciência desenvolvida,
por necessidade de sobrevivêcia. Fôssemos nós portadores de rostos limpos
naufragaríamos na primeira esquina! Quem
suportaria os arroubos da sinceridade espontânea? Falássemos sempre o que nos
passa ao coração e o destino mais certo seria a mais completa exclusão do
perímetro social. Como um grande teatro que vive por conveniências e encenações
programadas, a vida sustenta-se nessa escala de hipocrisias e fingimentos. O
ator é o emblema poético disso: sabe que finge, e é ainda melhor quando
convence os outros de que o seu fingimento é sincero, genuíno. Há aqui,
portanto, outra qualidade digna de realce: em matéria de arte, gostamos e
desejamos o engano! Queremos a toda custa acreditar nas mentiras que nos contam.
Se o personagem é a máscara que cabe ao ator, o ator que
interpreta um palhaço como personagem experimenta uma curiosa qualidade de
caráter, formando ao redor da sua figura (portadora de um nariz falso!) uma
moral translúcida, incapaz de mentir. Invejamos o palhaço porque ele é a
reprodução literal de uma consciência precária, ainda pouco desenvolvida nas
artimanhas da sobrevivência. O palhaço é essa entidade pura que a tudo reage
sem julgamentos críticos ou a certeza de que suas ações sofrerão reprimendas e
censuras. O palhaço tem a mesma alma da criança, dos loucos, dos velhos senis,
daqueles, enfim, que margeiam o trilho da normalidade. São, portanto, todos
belos e cândidos, mas muitas vezes
também cruéis e sombrios, dinamitando a ideia moralmente aceita de que há um
limite entre o bom e o mau. Não há espaços aqui para essa praga de comportamento
inspirada no politicamente correto.
O solo do palhaço Bisgoio no espetáculo ‘Sananab’, trabalho
levado ao Festivale pela Cia Pé de Chinelo, é algo incrível de se testemunhar
exatamente por legitimar as impressões apontadas acima. Através de uma
sequência de números simples, mas nem por isso destituídos de lirismo e beleza,
o ator estabelece um contato direto com a plateia ao defender a esperteza dessa
criatura entalhada unicamente na ingenuidade. O mundo do palhaço Bisgoio,
parece, não é o mundo do futuro, das especulações, tampouco da narrativa
estruturada. Tudo o que é feito é feito aos pedaços, em domínios reduzidos,
havendo como intuito único satisfazer a uma necessidade que lhe é imediata, e,
assim, dar-nos também uma outra e importante lição: a de que o nosso baú
repleto de máscaras complexas quase sempre nos afasta do tempo presente, daquilo
que não conseguimos ser porque o esforço é imaginar o que ainda não pode
existir.
Em tempos de acúmulo de tudo: posses, dinheiro,
expectativas, sonhos e projetos, o Festivale brinda o espectador com um
verdadeiro espetáculo de talento onde não há nenhuma pirotecnia, onde o vazio e
os poucos recursos cênicos estão a serviço dessa outra máscara mais essencial,
a que revela tudo sem nada esconder.
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