sábado, 5 de setembro de 2015

O ator se salva pela repetição. O ator repete-se sempre. É através da repetição que o sentido maior do seu ofício se realiza. É ele, o ator, uma máquina de incansáveis repetições. Hoje as luzem apagam-se para o mesmo espetáculo repetido ontem. O mesmo espetáculo que amanhã irá repetir-se uma vez mais. E terminada a semana, uma repetição da semana anterior, a semana seguinte promete seguir repetindo o mesmíssimo espetáculo, e assim sucessivamente, e até que o conjunto dos meses formem um apanhado geral de repetições. Uma temporada de espetáculos para o ator é uma coleção repetida de repetições. É evidente que há quem diga que tudo isso é falso, que não há repetição alguma, que cada noite é uma noite, que o ator nunca carrega o mesmo de si para todas as sessões. E é evidente que isso é verdadeiro. Mas só é verdadeiro porque há uma moldura única onde encaixa-se um mundo completo de contornos imutáveis. O ofício do ator compreende precisamente esse esforço de recuperar e manter uma estrutura prévia, bem acabada e ensaiada. Naufraga, evidentemente. E naufraga porque sua tarefa é sempre impossível, uma vez que é impossível engendrar uma repetição perfeita daquilo que se imagina um espetáculo ideal. Mas o ofício é justamente esse: o de permitir-se naufragar recorrentemente pela recuperação das fundações de um ideal inalcançável. É por isso que a repetição para o ator tem peso igual ao de um mantra espiritual. É na repetição que o ator se agarra. É sempre um desejo de tornar-se o que era, ou o que foi. O tempo do ator não é o tempo do presente ou do futuro. É um tempo de passado, mítico, de lembrança pura, sem contaminações com as intercorrências do instante em que aparece ao vivo aos olhos do espectador. E é evidente que aqui ele naufraga mais uma vez. Porque é imperioso que o ator saiba lidar com aquilo que lhe apresenta o instante. E é nesse intervalo entre o que era e o que é preciso ser que o ator desequilibra-se... Mas desequilibra-se como o faz qualquer um na vida. A repetição dos dias nada mais é do que uma metáfora maior daquilo que se repete dentro do teatro. O ator se salva porque experimenta na segurança do campo simbólico aquilo que o cenário dos dias muitas vezes cega aos olhos do cidadão comum. A repetição feito ladainha, reza sistemática, cenas sucessivas, é uma espécie de revelação do nosso real tamanho - dentro e fora da cena -, sempre menores frente àquilo que previamente sobrevive a nós... Repare nas carpideiras! A grandeza das carpideiras não está em chorar por defunto algum, mas em repetir sistematicamente as mesmas lamentações. É a métrica que salva a alma! 

Ser ator é sobretudo um exercício ético e filosófico. A estética é consequência.

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