quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Foi me dado o talento, ou o azar, de emocionar-me com as coisas que não existem. Um movimento de uma sinfonia, as cores impressas na paisagem pintada de um quadro, o parágrafo de um livro, a tristeza de um palhaço, um movimento de dança... Tudo isso me é fulminante. Sinto dor no coração com tudo aquilo que me convida a afastar-me da vida. As minhas lágrimas são fruto de metáforas. O meu riso igualmente é medido por contornos que não interferem em nada no fluxo ordinário dos dias. Eu mesmo escolhi como ofício a prática daquilo que nos convida a esquecer das fronteiras miseráveis de nossa existência. Tornei-me ator. E tenho absoluta certeza de que sou ator não por haver escolhido tornar-me ator, mas por falta completa de escolha. É um fardo ser ator. Mas um fardo maravilhoso. Ter o direito inalienável de gozar das intermitências daquilo que já veio a nós como contrato assinado é coisa que não cabe em valores financeiros. Crise econômica nenhuma abala um ator. Nossa vida é outra vida. A vida, essa primeira vida conhecida por todos, incluindo nós, atores, ela própria, a vida que somos obrigados a viver, sempre me pareceu um equívoco bastante suficiente para que eu pudesse importar-me com as suas recorrentes tragédias. Mas, e quando as pontas dos dois extremos aproximam-se de tal maneira coincidente que a dureza da realidade ameaça a mais pura das belezas de não conseguir alçar voo? Amanhã volto ao teatro para mais uma semana de Tempestade, o último e incrível texto escrito por Shakespeare. A história de um mago demiurgo que provoca um naufrágio de mentira. Próspero arma um teatro em busca da sua redenção através do perdão daqueles que no passado o fizeram mal. O mundo é um palco. Os ponteiros acertam-se na brincadeira de fingir um desastre. O mundo fora dos eixos de Hamlet é equacionado pela força da paz e pelo perdão. Shakespeare despede-se do teatro dando um voto de confiança e amor ao homem. O mesmo homem que por tantas peças o inspirou a derramar sangue na pele de personagens tirânicos. Mas tudo, enfim, parece correr para um destino comum. A vida é um sopro soprado pela boca de um idiota e sem sentido algum. Ou talvez sejamos todos feitos da mesma matéria efêmera e etérea dos sonhos, desmanchando-nos no curto período que dura um estalar de dedos. Nesse dia de hoje, impossível não lembrar-me de Adorno quando o filósofo pergunta-se sobre as chances da poesia sobreviver à Auschwitz. Impossível não lembrar-me do menino sírio de apenas três anos afogado na praia. Afogado de verdade. Impossível não pensar em mim, que tenho por dever inventar afogamentos diários. O que sou eu? Um canastrão distante dos acontecimentos que deveriam arrebatar-me? Ou já sou eu, sem o saber, um arrebatado desde o princípio? Quem domina quem? A vida a mim, ou eu à vida?

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