quinta-feira, 9 de novembro de 2017

A personagem já existiu. Se existe novamente é por motivo de uma atualização da sua já declarada não-existência. Raskolnikóv já matou a velha usurária quando Crime e Castigo começa, Hamlet já disse ser ou não ser eis a questão quando o fantasma aparece pela primeira vez aos guardas de Elsinore. Tudo já foi dito, escrito e revivido. Outros atores já representaram o mesmo papel que o ator de hoje representa. O teatro é essa espécie de templo religioso, mágico - ou fantasmagórico - que evoca o passado no presente. Nada é aqui e agora, tudo é lá atrás, no era uma vez. O tempo do teatro é o da narrativa épica. Primeiro é preciso ter morrido para depois celebrar a vida. Brás Cubas é o melhor ator que a prosa literária brasileira deu conta de produzir, e justamente porque Brás Cubas encarna a função primordial do ator: Brás Cubas já não é mais Brás Cubas no instante em que ele se apresenta a nós. Brás Cubas só pode ser Brás Cubas porque Brás Cubas já deixou de ser Brás Cubas. Memórias Póstumas de Brás Cubas é a melhor peça dramática que um autor nosso soube escrever. O ator presentifica não o que é, mas o que já foi. Essa ideia é importante justamente para reforçar o papel do ator diante da personagem, para reforçar a sua evidente reverência a algo que não pode ser ele próprio em ação, mas ele próprio no exercício de revelar algo para além do que ele é, ou pode ser, com o seu esforço. Nada mais frustrante do que um ator que aparece para o espectador ocupado com a inútil tarefa de SER ou VIVER a personagem que representa. Personagem nenhuma se presta a isso. A personagem é uma máscara que deve ser revelada pelo veículo que é o ator. Ele a estampa diante da plateia. A humildade do ator cabe nesse entendimento: a de que ele é simplesmente - e meramente - um arauto fúnebre daquilo que já se foi. O tempo presente da encenação teatral é um tempo coagulado. Aí está a sua força de persuasão e de convencimento - precisamos da fábula para misturar-nos a essa espécie de magia eterna que falta a nossa curta existência.


...

....

Nenhum comentário:

Postar um comentário