terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Tudo que é íntimo demais é terreno estrangeiro ao artístico. Ou, caso o objeto de arte em questão seja resultado de alguma intimidade, é porque, sendo arte de genuíno valor, deixou de ser íntimo para virar outra coisa maior do que uma dor pessoal, uma necessidade particular, um preenchimento do eu. Se há loucura no artista - e eu acredito que há, e muita! - é uma loucura estrangeira ao artista, que vaza para o mundo ao grau máximo de anular o seu autor. Há uma confusão generalizada que mistura essa ideia romântica do entregar-se de corpo e alma - como se o ofício do artista fosse um constante exercício de revelação de quem é o artista, do que ele deseja comunicar, das suas ânsias e vocações, das aspirações sensíveis e projeções psicológicas que ele imagina funcionar como matéria fundamental para que haja um sentido e função em ser um artista. Como se ser um artista fosse agir como um canal onde o público converge para o que se passa dentro do artista. Penso exatamente ao contrário. Ser quem se é não é nenhum objeto de busca, tampouco razão ou argumento para reunir plateia ao redor de quem quer que seja. Já somos o que somos, e isso deveria bastar-nos. O esforço é outro, é impedir que eu apareça, que eu respire, que eu exista. E isso para que algo maior apareça, para que algo maior respire, para que algo maior do que eu exista. Se é verdade que o artista parte de uma inquietação íntima - o que eu acho óbvio demais para conjecturar a respeito - é também verdade que o artista deve necessariamente distanciar-se de si próprio, produzir vazios de identidade, cimentar o seu choro e o seu riso. Nossa tragédia contemporânea é uma tragédia do eu-mimado, que não só contenta-se em aparecer em público como, principalmente, faz da sua aparição um objeto de aplauso, de inveja, de admiração por quem ainda não teve coragem de usufruir da mesma terapia de extorsão pela qual sujeita-se cada vez mais aquele que pretende expressar-se.


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