sábado, 2 de janeiro de 2016

Viajo para ficar comigo. Só comigo. A existência ordinária é essa excursão eterna cuja regra é ter de conviver, ter de deixar-se de lado para saciar as exigências do outro. Quando viajo, viajo para mim. Só para mim. Não quero conhecer ninguém, ter de haver com quem quer que seja, dividir verbos, sensações, risos ou choros com outra pessoa que não eu. Não tenho ímpeto nenhum de conhecer gente nova - e por que teria se gente é gente aqui ou acolá, na China ou no Alasca, em qualquer lugar? Viajo para a companhia de mim mesmo, para conversas silenciosas, caminhadas solitárias, paisagens refletidas de mim e que me esqueci de contemplar por descuido ou teimosia. Quando viajo para longe, pouco me importa conhecer a cidade. Ela, a cidade, é só um pequenino pretexto para que eu conheça a mim. Quando viajo, sou como uma orquestra sinfônica que ganha fôlego entre um movimento e outro. A música é a ausência de música quando eu viajo. É pela pausa, pela ausência, como eu entendo o verbo viajar. 

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Convidado por Dom Quixote para sentar-se à mesa do banquete, Sancho diz:

'(...) - Grande honra! - disse Sancho. - mas garanto a vossa mercê que, tendo eu de comer, comeria tão bem em pé e sozinho quanto sentado com um imperador. Ou, para dizer a verdade, saboreio muito melhor o que como em meu canto sem melindres nem cerimônias, mesmo que seja só pão e cebola, do que os perus e outras mesas onde me seja obrigado mastigar devagar, beber pouco, limpar-me seguido, não espirrar nem tossir se tiver vontade, nem fazer outras coisas que a solidão e a liberdade trazem consigo. Então, meu senhor, peço que essas honras que vossa mercê quer me conceder por ser adepto e praticante da cavalaria, sendo eu escudeiro de vossa mercê, sejam substituídas por outras coisas mais cômodas e mais proveitosas para mim. Mesmo que eu receba essas honras de bom grado, renuncio a elas desde já até o fim do mundo. (...)' 

Cervantes.



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