sexta-feira, 9 de junho de 2017

Eu tenho problemas com o enunciado. Teatro autobiográfico, para mim, é tão contraditório quanto entrar num restaurante para reconhecer firma dum documento. Ou ir pruma balada na expectativa de jogar uma partida de ping-pong no meio da pista. E o enunciado do teatro, para mim, está justamente na despersonalização do ator. Não para que ele deixe de ser a pessoa física que é  (a reencarnação e a mesa branca são outros departamentos), mas para que, desde o início de tudo, ele saiba rearticular um corpo que não é o seu corpo natural, uma voz que não é a sua voz natural, um desejo - ainda que impossível - de assumir o absurdo de ser um outro alguém, de se artificializar até o ponto de fazer sumir sua identidade. É desse absurdo que trata o teatro, que é da mesma qualidade da brincadeira da criança, do jogo lúdico, da senilidade dos loucos. Já imaginou pedir a uma criança para que ela pare com bobagem e seja verdadeira? Ou pedir encarecidamente a um louco que ele interrompa com suas sandices? A graça de ser louco está na loucura. A graça da criança é que ela tem o direito de brincar de ser quem ela bem quiser ser. A graça do teatro é que o teatro não equivale à vida (a loucura é fingida, a brincadeira é seriamente levada a sério).

Ou o ator é um portador de todo esse manancial forjado pela ficção que sobrepuja a sua individualidade, ou o teatro vira um templo onde se vende laranjas, uma feira livre que dá aulas de aritmética, uma quadra de esportes que distribui pãezinhos frescos recém saídos do forno...

Enunciado! Preservo o Enunciado! Teatro = disfarce = máscara = mentira = faz de conta = era uma vez...

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