quinta-feira, 17 de março de 2016

Parece-me inconcebível que um ator de ofício - eu digo ator de ofício!, não desse tipo de ator do embelezamento da imagem para comércio com fã-clubes e indústrias do estrelato -, não reaja à farsa ocorrida no dia de hoje. Porque o nosso ofício, o do ator de ofício (e eu sou um deles, e com orgulho monumental de ser quem sou), é fazer farsa. Ir ao teatro para subir ao palco é como inocular-se com uma vacina poderosíssima de imunidade aos espetáculos da vida. Porque ser ator é habitar um ceticismo pedagógico que evita patinar nos extremos da euforia, seja quando ela é movida pelo sorriso da alegria ou pela lágrima da tristeza. Ser ator é botar a cabeça para funcionar sem contaminar-se com o jorro de emoção que emburrece a massa da plateia dos nossos dias - porque a plateia é altamente afeita a deixar-se emburrecer, a ser conduzida, a fazer coro com os efeitos espetaculares forjados especialmente para que ela dê risada ou para que ela chore. Como um ator de ofício pode deixar-se levar por uma cena teatral cujos personagens são tão patéticos e mal interpretados? Não digo que haja uma verdade e que sou eu o arauto divulgador dela, Não! Pelo contrário! Não sou oráculo de nada. E estou exatamente no lado oposto: o da mentira. Como fazedor de farsas que sei que sou, entendo eu bastante bem de como produzir uma mentira. É dessa instância que é preciso tratar: se a verdade é inapreensível, a mentira é coisa bastante fácil de tocar com as mãos, de manipular, de se ventilar por aí. E se o mundo é um palco, como Shakespeare diz, é bom que saibamos que a mentira é matéria prima constituinte das tramas das esquinas. Portanto, aplaudir com seriedade aquilo que é tão fajuto quanto o é um figurino mal vestido, parece-me - quando se trata da voz de um ator de ofício -, uma aberração de proporções gigantescas, de mentecapice autoproclamada, de ausência de conhecimento sobre aquilo que se faz quando os refletores se acendem. Sou grato ao meu ofício. Subir ao palco é um tratado diário de ética e política. Porque interpretar uma personagem nunca é viver o que a personagem vive! Nunca! Isso é retórica afetada de quem usa a paciência alheia para afirmar o seu próprio ego dilatado. Interpretar uma personagem é direcionar o olhar para o ser humano e surpreender-se com ele, analisá-lo, pensar com ele, ter dúvidas sobre quem ele é, é assombrar-se dele e apresentá-lo para a apreciação coletiva! Trabalhar com a mentira é saber livrar-se dela, ou rir daquilo que os outros acreditam sem que saibam das estratégias de produção dessa crença, que é - quando interessa a alguém -, uma brilhante manobra de poder. Ser ator é saber ser um estupendo manipulador. Mas aí já é um poder controlado, propositalmente localizado para que tenha um começo, um meio e um fim. Um belo de um castelo de cartas que se constrói à vista de todos, sem desejo algum de sedimentar paredes de concreto.

Que beleza que é ser ator... Mas um ator de ofício!


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