domingo, 4 de outubro de 2015

A maior das complicações que há em interpretar uma personagem de Shakespeare é também a mais deliciosa das facilidades: não há personagem nenhuma. É o ator entregue à sua condição de ator, obrigado a encarar um punhado exaustivo de linhas de força, vetores que cortam o espaço, timbres que ferem a voz. Não há método introspectivo que dê conta de formular a interioridade de uma única personagem sequer em Shakespeare. Como se Shakespeare trabalhasse para constituir individualidades, dessas individualidades que a febre das personagens realistas adora fazer latejar lá no fundo da alma. Nada disso! Só há corpo em Shakespeare. Fiscalidade e tensões. E o corpo é coletivo, pertence a todos sem exceção. E nisso não há qualquer movimento de menosprezo ao tamanho do universo iluminado por Shakespeare. Muito ao contrário! O corpo, a pele, a voz, aquilo que é tocado, que toca e que pode fazer tocar, é justamente o receptáculo do que há de mais espiritual. O paradoxo é esse mesmo: o raso já contém tudo o que de profundo é necessário acessar. Shakespeare é periférico, enxerga o perto de longe, mergulha no abismo ao raspar as extremidades. E só porque considera as extremidades é que consegue ultrapassá-la para além dela. Seria mais justo eliminar esse termo 'personagem' nas peças de Shakespeare. São, antes, figuras, marionetes. O que resume perfeitamente aquilo que é o próprio ator: um instrumento de expressividade a serviço da comunicação. E só. E já é muito! Muitíssimo!




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