quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Atores não deveriam aparecer nos cartazes e anúncios de seus próprios espetáculos. Atores não deveriam dar entrevistas sobre seus próprios espetáculos. Atores não deveriam poder sair por aí dizendo aos quatro ventos que são atores a trabalhar em determinado espetáculo. A desculpa de que é por esses meios que se divulga um espetáculo para que o público nele compareça é frágil frente ao preço que se paga. Eleva-se o ego do ator aos patamares rarefeitos de uma individualidade burra, cegando-o quase na totalidade das vezes para aquilo que de fato representa o seu sagrado ofício: a obra estética. Resguardemos o ego do exibicionismo declarado para quando o ator subir ao palco! Aí sim ele pode ser exibido, histérico, altissonante. Porque aí o que está em evidência - e é dever do ofício do ator agir assim - é a defesa estética de uma obra de arte. Nada mais importa do que o esforço para erguer as bases poéticas de uma obra. Ocorre que o ator, convocado sempre a ser ator fora de cena, torna-se mais evidente fora do que dentro de cena, e é ele encarregado das funções mais variadas que nada competem para a defesa de uma obra estética. O ator, então, carrega um manto de agente político a serviço de uma demanda política que justifique a existência da obra poética fora dos domínios próprios da obra poética. E, na verdade, nada, absolutamente nada, deve legendar o sentido de existência de uma obra poética senão o seu valor poético. Se a poesia é ruim é porque a poesia é ruim, não porque as implicações ideológicas fizeram dela uma coisa ruim. E, por outro lado, nada é urgente demais para ser visto e encenado porque fora da cena a conjuntura do mundo pede que algo seja visto e encenado. Desde que o assunto seja o homem - o que engloba todas as obras - tudo e qualquer coisa é urgente e necessário. Jogar luz nessa razão é, mais uma vez, fazer de tudo para justificar uma coisa que não tem justificativa senão o seu próprio direito de existir: a obra de arte por ela própria, e só por ela própria. Então, continuando, o ator vira uma peça de propaganda das demandas sociais, das lacunas educacionais, da emergência do que precisa ser dito porque algo não anda bem no meio público. Ou, então, convencido de que ele é importante - ou mesmo inconsciente desse fato ainda que continue agindo da mesma forma -, o ator mostra-se inteiramente em seu charme vaidoso na expectativa de que os outros o admirem em seu ato de ousadia e coragem para levar ao palco aquilo que exige coragem para ser encenado. E mesmo que o resultado poético da cena seja um desastre não é isso o que importa. Muitas vezes o desastre não é matéria de reconhecimento de parte nenhuma. Importa o ator, um bravo guerreiro que enfrenta a tudo e a todos para exibir-se em seu ato de ousadia e coragem. A obra de arte é um mero pretexto para qualquer coisa que justifique a sua existência, exceto ela própria. E o público comporta-se da mesma maneira burra: aplaudindo o que é ruim sem saber identificar o que é ruim já que acostumou-se a não olhar para a obra de arte. É o entorno que passa a contar, as fronteiras daquilo que não diz respeito a obra de arte. Nosso tempo é esse tempo: um tempo de periferias. Como se o que fizesse os jogadores entrar em campo não fosse talento algum para o jogo senão a habilidade empresarial para o marketing. E os torcedores também, afeitos por coisa nenhuma, engolem felizes a falta de habilidade dos que desfilam em campo.

Sendo toda e qualquer arte matéria do inútil, é preciso mais intransigência e menos generosidade para se lidar com as coisas que são inúteis. É preciso muito mais rigor para saber identificar o que é uma obra de arte de valor. É preciso sumir com os atores. Implodir seu império. Em favor da obra de arte.

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'(...) Pois então, ó Augusto, eu sei que o homem deve cultivar a modéstia, e espero ter logrado manter-me humilde. Mas, com relação à Arte, sou presunçoso, se assim queres chamá-lo. Reconheço que o homem deve arcar com quaisquer deveres, pois só ele é portador de deveres, mas sei que dever algum pode ser imposto à Arte, nem deveres úteis aos Estado nem outros; do contrário, apenas a converteríamos em antiarte, e se os deveres do homem, como ocorre atualmente, estão em outro lugar que não na Arte, somente lhe resta a alternativa de abandonar a Arte, até por respeito a ela... Justamente essa época exige do indivíduo a mais intensa modéstia, e na mais intensa modéstia, e ainda mais, com apagamento do próprio nome, deve ele servir, como um dos anônimos servidores do Estado, como soldado ou de outro modo, não, porém, com obras poéticas sem consistência, que são apenas arrogante antiarte, enquanto pretenderem servir o bem do Estado através da sua supérflua existência individual... (...)'. Hermann Broch. A Morte de Virgílio.



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