domingo, 5 de março de 2017

Gosto das coisas de que a plateia não sabe porque é impossível que ela saiba. Gosto da careta que fazemos quando estamos de costas para os olhares da plateia. Gosto de pensar que a plateia não faz ideia de que o que fazemos hoje não é nem de perto parecido com o que fizemos ontem. Ainda que as mesmas frases estejam lá para serem repetidas, as marcas respeitadas como percursos sistematicamente copiados, a plateia é sempre ignorante para todo um espetáculo de miudezas, de entonações, timbres, pequenos gestos e respirações ínfimas. E o acúmulo desses invisíveis acentos faz toda a diferença para que a plateia veja hoje o que ontem era impossível que ela tivesse visto. Porque cabe a nós mentir para a platéia que o espetáculo que apresentamos é esse que sabemos fazer. Porque a verdade é que nunca sabemos fazer, ou reproduzir, o que ontem fizemos. E essa ignorância da plateia me fascina. A aceitação franca de que o que ela vê é a mais pura verdade daquilo que sabemos fazer. Como se houvesse uma pureza reservada à ela naquele dia específico em que ela estava lá para nos assistir. Gosto desse mar invisível de mistério que a plateia, em sua ingenuidade de plateia, desconhece por completo. Gosto de que ela, a plateia, não saiba do tanto de traquinagens que preparamos voluntariamente só para que ela nada desconfie de que guardamos para nós esses mesmos segredos cuidadosamente enjeitados feito peripécias íntimas, só iluminadas por nós que diariamente apresentamos aquele espetáculo que a plateia julga ser aquele mesmo espetáculo sempre. Gosto desse infinito de enganos que é típico das fronteiras do teatro. Gosto mais do acúmulo desses enganos não revelados do que aquilo que é preciso inexoravelmente revelar. Gosto da sombra, do lusco-fusco, da ironia e do sarcasmo de fingir que digo a verdade, quando, na verdade, o que mais faço é justamente mentir que digo a verdade. O tanto de contingente de coisas não percebidas é o que me ergue para fazer o que eu faço. É a fresta da máscara que sustenta meu ânimo.


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