sábado, 16 de agosto de 2014

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Não há benesse maior para o ator do que experimentar a sua própria invisibilidade. Digo o ator de teatro, esse elemento de resistência aos apetrechos tecnológicos, espécie de Dom Quixote que aparece aos olhos alheios para não se ver, mas para ser visto. O máximo que faz é ouvir a própria voz, elo essencial da comunicação com o outro. O teatro é, antes de tudo, história contada, coisa que dura por um breve tempo para depois morrer, condenando tudo e a todos ao vazio da memória. Mas esse terreno de desmoronamento é um terreno fértil, propenso à imaginação, ao trabalho coletivo que faz formar ao redor de uma fogueira toda uma assembleia atenta, palpitando em uníssono na expectativa do passo seguinte a ser dado pelo herói. O ator de teatro é um contador de histórias, faz da sua voz uma rede poderosa que sabe derramar no oceano para que os peixes sintam-se atraídos por ela. O ator de teatro não usa isca nem anzol, não precisa recorrer à força do convencimento, ao exercício físico de puxar para si a atenção do espectador como o faz a imagem asséptica da televisão. Graças a Deus o ator de teatro não se vê, porque não se vendo pode se ouvir, e ao ouvir a si próprio abre espaço fundamental para ouvir e ver os outros, aqueles lá estão naquele instante preciso, presentes e desejosos para configurar parte de algo maior que o individual.

Ontem tive a sorte e o prazer de assistir à estreia do espetáculo de teatro ‘Caros Ouvintes’, em cartaz no auditório do MASP. O esplendoroso trabalho dos atores, aliado a um texto e direção igualmente primorosos, conta a história do naufrágio do rádio como veículo disseminador das radionovelas, anunciando o futuro imperioso da televisão. O trabalho não é só o registro de um tempo que já não existe mais, mas também a triste constatação de que pertencemos a uma geração de preguiçosos, extremamente resistentes aos mistérios do ouvir, sedentos por fatos, imagens e informações que satisfaçam aos olhos uma espécie de curiosidade mórbida. A perda da capacidade de ouvir está diretamente associada à atrofia desse músculo poderoso chamado imaginação, hoje tão desprezado pela urgência dos suportes tecnológicos. E perder o sentido do imaginar é distanciar-se do outro, torná-lo inimigo, estranho.

A loucura do ator de teatro é atirar-se à tarefa de brecar o tempo para poder prosear junto com a plateia. Ontem, no auditório do MASP, o teatro cumpriu a sua mais fundamental missão: a de restaurar uma melodia comum, a da humanidade que ainda há latente em cada um de nós.

Corram para assistir ao espetáculo ‘Caros Ouvintes’!

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